Leia o texto a seguir e responda à questão.
Urupês
Jeca Tatu é um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resumem todas as características da espécie.
(...)
De pé ou sentado, as ideias se lhe entramam, a língua emperra e não há de dizer coisa com coisa.
De noite, na choça de palha, acocora-se em frente ao fogo para “aquentá-lo”, imitado da mulher e da prole.
Para comer, negociar uma barganha, ingerir um café, tostar um cabo de foice, fazê-lo noutra posição será desastre infalível. Há de ser de cócoras.
(...)
Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!
Jeca mercador, Jeca lavrador, Jeca filósofo...
Quando comparece às feiras, todo mundo logo adivinha o que ele traz: sempre coisas que a natureza derrama pelo mato e ao homem só custa o gesto de espichar a mão e colher – cocos de tucum ou jiçara, guabirobas, bacuparis, maracujás, jataís, pinhões, orquídeas; ou artefatos de taquara-rapoca – peneiras, cestinhas, samburás, tipitis, pios de caçador; ou utensílios de madeira mole – gamelas, pilõezinhos, colheres de pau.
Nada mais.
Seu grande cuidado é espremer todas as consequências da lei do menor esforço – e nisto vai longe. Começa na morada. Sua casa de sapé e lama faz sorrir aos bichos que moram em toca e gargalhar ao joão-de-barro. Pura biboca de bosquímano. Mobília, nenhuma. A cama é uma espipada esteira de peri posta sobre o chão batido.
Às vezes se dá ao luxo de um banquinho de três pernas – para os hóspedes. Três pernas permitem equilíbrio; inútil, portanto, meter a quarta, o que ainda o obrigaria a nivelar o chão. Para que assentos, se a natureza os dotou de sólidos, rachados calcanhares sobre os quais se sentam?
Nenhum talher. Não é a munheca um talher completo – colher, garfo e faca a um tempo?
No mais, umas cuias, gamelinhas, um pote esbeiçado, a pichorra e a panela de feijão.
Nada de armários ou baús. A roupa, guarda-a no corpo. Só tem dois parelhos; um que traz no uso e outro na lavagem.
Os mantimentos apaiola nos cantos da casa.
(...)
Seus remotos avós não gozaram maiores comodidades. Seus netos não meterão quarta perna ao banco. Para quê? Vive-se bem sem isso.
Se pelotas de barro caem, abrindo seteiras na parede, Jeca não se move a repô-las. Ficam pelo resto da vida os buracos abertos, a entremostrarem nesgas de céu.
(...)
Um terreirinho descalvado rodeia a casa. O mato o beira. Nem árvores frutíferas, nem horta, nem flores – nada revelador de permanência.
Há mil razões para isso; porque não é sua a terra; porque se o “tocarem” não ficará nada que a outrem aproveite; porque para frutas há o mato; porque a “criação” come; porque...
– “Mas, criatura, com um vedozinho por ali... A madeira está à mão, o cipó é tanto...”
Jeca, interpelado, olha para o morro coberto de moirões, olha para o terreiro nu, coça a cabeça e cuspilha.
– “Não paga a pena.”
(...)
O sentimento de pátria lhe é desconhecido. Não tem sequer a noção do país em que vive. Sabe que o mundo é grande, que há sempre terras para diante, que muito longe está a Corte com os graúdos e mais distante ainda a Bahia, donde vêm baianos pernósticos e cocos.
Perguntem ao Jeca quem é o presidente da República:
– “O homem que manda em nós tudo?”
– “Sim”
– “Pois de certo que há de ser o imperador.”
Em matéria de civismo não sobe de ponto.
– “Guerra? T’esconjuro! Meu pai viveu afundado no mato p’ra mais de cinco anos por causa da guerra grande. Eu, para escapar do “reculutamento”, sou inté capaz de cortar um dedo, como o meu tio Lourenço...”
(LOBATO, M. Urupês. 37.ed. (rev.). São Paulo: Brasiliense, 2005. p.165-176.)
Quanto ao autor e à obra, assinale a alternativa correta.