I
— Traíste-me, Sem Medo. Tu traíste-me.
(...)
Sabes o que tu és afinal, Sem Medo? Es um ciumento. Chego a pensar se não és homossexual. Tu querias-me só, como tu. Um solitário do Mayombe. (...) Desprezo-te. (...) Nunca me verás atrás de uma garrafa vazia. (...) Cada sucesso que eu tiver, será a paga da tua bofetada, pois não serei um falhado como tu.
Pepetela, Mayombe. Adaptado.
II
— Peço-te perdão, Sem Medo. Não te compreendi, fui um imbecil. E quis igualar o inigualável.
Pepetela, Mayombe.
Esses excertos de Mayombe referem-se a conversas entre as personagens Comissário e Sem Medo em momentos distintos do romance.
Em I e II, as falas do Comissário revelam, respectivamente,
— Posso furar os olhos do povo?
Esta frase besta foi repetida muitas vezes e, em falta de coisa melhor, aceitei-a. Sem dúvida. As mulheres hoje não vivem como antigamente, escondidas, evitando os homens. Tudo é descoberto, cara a cara. Uma pessoa topa outra. Se gostou, gostou; se não gostou, até logo. E eu de fato não tinha visto nada. As aparências mentem. A terra não é redonda? Esta prova da inocência de Marina me pareceu considerável. Tantos indivíduos condenados injustamente neste mundo ruim! O retirante que fora encontrado violando a filha de quatro anos — estava aí um exemplo. As vizinhas tinham visto o homem afastando as pernas da menina, todo o mundo pensava que ele era um monstro. Engano. Quem pode lá jurar que isto é assim ou assado? Procurei mesmo capacitar-me de que Julião Tavares não existia. Julião Tavares era uma sensação. Uma sensação desagradável, que eu pretendia afastar de minha casa quando me juntasse àquela sensação agradável que ali estava a choramingar.
Graciliano Ramos, Angústia.
Em termos críticos, esse fragmento permite observar que, no plano maior do romance Angústia, o ponto de vista
TEXTO PARA A QUESTÃO
Romance LIII ou Das Palavras Aéreas
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova! (...)
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão podíeis ter sido!
— sois madeira que se corta,
— sois vinte degraus de escada,
— sois um pedaço de corda...
— sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
— sois um homem que se enforca!
Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência.
A “estranha potência” que a voz lírica ressalta nas palavras decorre de uma combinação entre
Alferes, Ouro Preto em sombras
Espera pelo batizado,
Ainda que tarde sobre a morte do sonhador
Ainda que tarde sobre as bocas do traidor.
Raios de sol brilharão nos sinos:
Dez vias dar.
Ai Marília, as lirase o amor
Não posso mais sufocar
E a minha voz irá
Pra muito além do desterro e do sal,
Maior que a voz do rei.
Aldir Blanc e João Bosco, trecho da canção “Alferes”, de 1973.
A imagem de Tiradentes — a quem Cecília Meireles qualificou “o Alferes imortal, radiosa expressão dos mais altos sonhos desta cidade, do Brasil e do próprio mundo”, em palestra feita em Ouro Preto — torna a aparecer como símbolo da luta pela liberdade em vários momentos da cultura nacional.
Os versos do letrista Aldir Blanc evocam, em novo contexto, o mártir sonhador para resistir ao discurso
TEXTO PARA A QUESTÃO
Leusipo perguntou o que eu tinha ido fazer na aldeia. Preferi achar que o tom era amistoso e, no meu paternalismo ingênuo, comecei a lhe explicar o que era um romance. Eu tentava convencê-lo de que não havia motivo para preocupação. Tudo o que eu queria saber já era conhecido. E ele me perguntava: "Então, por que você quer saber, se já sabe?" Tentei lhe explicar que pretendia escrever um livro e mais uma vez o que era um romance, o que era um livro de ficção (e mostrava o que tinha nas mãos), que seria tudo historinha sem nenhuma consequência na realidade. Ele seguia incrédulo. Fazia-se de desentendido, mas na verdade só queria me intimidar. As minhas explicações sobre o romance eram inúteis. Eu tentava dizer que, para os brancos que não acreditam em deuses, a ficção servia de mitologia, era o equivalente dos mitos dos índios, e antes mesmo de terminar a frase, já não sabia se o idiota era ele ou eu. Ele não dizia nada a não ser: "O que você quer com o passado?”. Repetia. E, diante da sua insistência bovina, tive de me render à evidência de que eu não sabia responder à sua pergunta.
Bernardo Carvalho, Nove noites. Adaptado.
As respostas do narrador às perguntas de Leusipo são uma tentativa de disfarçar o caráter
TEXTO PARA A QUESTÃO
Leusipo perguntou o que eu tinha ido fazer na aldeia. Preferi achar que o tom era amistoso e, no meu paternalismo ingênuo, comecei a lhe explicar o que era um romance. Eu tentava convencê-lo de que não havia motivo para preocupação. Tudo o que eu queria saber já era conhecido. E ele me perguntava: "Então, por que você quer saber, se já sabe?" Tentei lhe explicar que pretendia escrever um livro e mais uma vez o que era um romance, o que era um livro de ficção (e mostrava o que tinha nas mãos), que seria tudo historinha sem nenhuma consequência na realidade. Ele seguia incrédulo. Fazia-se de desentendido, mas na verdade só queria me intimidar. As minhas explicações sobre o romance eram inúteis. Eu tentava dizer que, para os brancos que não acreditam em deuses, a ficção servia de mitologia, era o equivalente dos mitos dos índios, e antes mesmo de terminar a frase, já não sabia se o idiota era ele ou eu. Ele não dizia nada a não ser: "O que você quer com o passado?”. Repetia. E, diante da sua insistência bovina, tive de me render à evidência de que eu não sabia responder à sua pergunta.
Bernardo Carvalho, Nove noites. Adaptado.
Na cena apresentada, que explora o desconforto gerado pela difícil interlocução com o indígena, o narrador