Agora a lagoa estava cheia, tinha coberto os currais que ele construíra. O barreiro também se enchera, atingia a parede da cozinha, as águas dele juntavam-se às da lagoa. Para ir ao quintal onde havia craveiros e panelas de losna, Sinha Vitória saía pela porta da frente, descia o copiar e atravessava a porteira de baraúna. Atrás da casa, as cercas, o pé de turco e as catingueiras estavam dentro da água. As goteiras pingavam, os chocalhos das vacas tiniam, os sapos cantavam. O som dos chocalhos era familiar, mas a cantiga dos sapos e o rumor das goteiras causavam estranheza. Tudo estava mudado. Chovia o dia inteiro, a noite inteira. As moitas e capões de mato onde viviam seres misteriosos tinham sido violados. Havia lá sapos. E a cantiga deles subia e descia, uma toada lamentosa enchia os arredores. Tentou contar as vozes, atrapalhou-se. Eram muitas, com certeza havia uma infinidade de sapos nas moitas e nos capões. Que estariam fazendo? Por que gritavam a cantoria gorgolejada e triste? Nunca vira um deles, confundia-os com os habitantes invisíveis da terra e dos bancos de macambira.
Graciliano Ramos, Vidas secas.
Nesse romance,
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir – como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada [...] O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. [...] Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos, e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
Clarice Lispector, “Amor”.
A personagem Ana, ao deparar com a visão de um cego em meio a um dia de rotina,
Este ainda tinha as suas coleções de obras de arte, mas ela tinha apenas a recordação daquele filho que a deixara tão cedo. Por isso olha o Sem-Pernas, esfarrapado, com um grande carinho e ao lhe falar sua voz tem uma doçura diferente da de sempre. Há como que um pouco de alegria na doçura da sua voz, e isso espanta a criada:
— Entre, meu filho. Deixe estar que vou arranjar um trabalho para você... – pôs a mão fina e aristocrática, onde brilhava solitário, na cabeça suja do Sem-Pernas e falou para a criada:
— Maria José, prepare o quarto de cima da garagem para este menino. Mostre o banheiro a ele, dê um roupão de Raul, depois dê comida a ele...
— Antes de botar o almoço, dona Ester?
— Antes, sim. Faz dois dias que ele não come, pobrezinho...
O Sem-Pernas nada dizia, apenas secava com as costas da mão lagrimas fingidas.
— Não chore... – falou a senhora, e acariciou o rosto da criança.
— A senhora é tão boa. Deus lhe paga...
Depois perguntou como ele se chamava, e o Sem-Pernas deu o primeiro nome que lhe passou pela cabeça:
— Augusto... – e como repetia o nome para si mesmo, para não se esquecer que se chamava Augusto, não viu no primeiro momento a emoção da senhora, que murmurava:
— Augusto, o mesmo nome...
Disse em voz alta, porque agora o Sem-Pernas olhava seu rosto emocionado:
— Meu filho também se chamava Augusto... Morreu quando tinha assim o seu tamanho... Mas entre, meu filho, vá se lavar para comer.
Jorge Amado, Capitães da Areia.
O envolvimento do personagem Sem-Pernas com dona Ester
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, é um romance que
“A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, presente na coletânea Sagarana,