Sentimental
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!
– Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!
Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
“Neste país é proibido sonhar”.
Poema do jornal
O fato ainda não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensanguentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting.
A pena escreve.
Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.
Poesia
Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 35; 41; 45).
Sobre os termos “já” e “nervosa”, presentes no segundo verso de “Poema do jornal”, considere as afirmativas a seguir.
I. O termo “já” é ligeiramente antecipado, pois se refere à transformação em notícia, mas essa antecipação garante maior ênfase à questão do tempo como marca expressiva do poema.
II. O termo “nervosa” contém, a princípio, um significado divergente do adjetivo “doce”, mas ambos os termos são associados com a agitação e a aceleração do cotidiano moderno.
III. O termo “já” é empregado como contraponto ao termo “ainda”, utilizado no verso anterior, embora ambos estejam subordinados ao fato citado no verso inicial.
IV. O termo “nervosa” indica que o repórter, assim como o poeta e como o sujeito lírico, exibe o desconforto para administrar emoções no acompanhamento da vida moderna.
[1] Tínhamos lutado em silêncio, sem que nada mais se ouvisse do que os encontrões pelo soalho. No corredor,
entretanto, vimos Aristarco que chegava como em socorro. Bento Alves passou; imobilizou-o com o olhar sem
vista, esgazeado, medonho, de quem acaba de perpetrar um homicídio e desapareceu, trôpego, manchado
de pó, lábios inflamados, desordem nos cabelos.
[5] Aristarco veio sobre mim. Que explicasse a briga! Eu estava como o adversário, empoeirado e sujo como de
rolar sobre escarros.
Respondi-lhe com violência.
“Insolente”! rugiu o diretor. Com uma das mãos prendendo-me a blusa, a estalar os botões, com a outra pela
nuca, ergueu-me ao ar e sacudiu. “Desgraçado! desgraçado, torço-te o pescoço! Bandalhozinho impudente!
[10] Confessa-me tudo ou mato-te.”
Em vez de confessar, segurei-lhe o vigoroso bigode. Fervia-me ainda a excitação do primeiro combate; não
podia olhar conveniências de respeito. Esperneei, contorci-me no espaço como um escorpião pisado. O
diretor arremessou-me ao chão. E, modificando o tom, falou: “Sérgio! ousaste tocar-me!”
– Fui primeiro tocado! repliquei fortemente.
[15] – Criança! feriste um velho!
Reparei que havia no chão fios brancos de bigode.
– Fui vilmente injuriado, disse.
– Ah! meu filho, ferir a um mestre é como ferir ao próprio pai, e os parricidas serão malditos.
O tom comovido deste final inesperado impressionou-me até o íntimo d’alma. Estava vencido. Fiquei por um
[20] minuto horrorizado de mim mesmo. De volta do atordoamento, achei-me só no corredor. A saída dramática
do diretor aumentou-me ainda remorsos. Houve uma reação de esforço moral e desatei nervosamente em
pranto, chorei a valer, amparando-me ao peitoril de uma janela.
Contava certo com um castigo excepcional, uma cominação qualquer do célebre código do arbítrio, em artigo
cujo grau mínimo fosse a expulsão solene.
[25] Esperei um dia, dois dias, três: o castigo não veio. Soube que Bento Alves despedira-se do Ateneu na mesma
tarde do extraordinário desvario. Acreditei algum tempo que a minha impunidade era um caso especial do
afamado sistema das punições morais e que Aristarco delegara ao abutre da minha consciência o encargo
da sua justiça e desafronta. Hoje penso diversamente: não valia a pena perder de uma vez dois pagadores
prontos, só pela futilidade de uma ocorrência, desagradável, não se duvida, mas sem testemunhas.
[30] O caso morreu em segredo de discrição, encontrando-nos eu e o diretor num conchavo bilateral de reserva,
como se nada houvesse.
(POMPEIA, Raul. O Ateneu. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 200-202).
Quanto às circunstâncias da briga entre o protagonista e Bento Alves, assinale a alternativa correta.
[1] Tínhamos lutado em silêncio, sem que nada mais se ouvisse do que os encontrões pelo soalho. No corredor,
entretanto, vimos Aristarco que chegava como em socorro. Bento Alves passou; imobilizou-o com o olhar sem
vista, esgazeado, medonho, de quem acaba de perpetrar um homicídio e desapareceu, trôpego, manchado
de pó, lábios inflamados, desordem nos cabelos.
[5] Aristarco veio sobre mim. Que explicasse a briga! Eu estava como o adversário, empoeirado e sujo como de
rolar sobre escarros.
Respondi-lhe com violência.
“Insolente”! rugiu o diretor. Com uma das mãos prendendo-me a blusa, a estalar os botões, com a outra pela
nuca, ergueu-me ao ar e sacudiu. “Desgraçado! desgraçado, torço-te o pescoço! Bandalhozinho impudente!
[10] Confessa-me tudo ou mato-te.”
Em vez de confessar, segurei-lhe o vigoroso bigode. Fervia-me ainda a excitação do primeiro combate; não
podia olhar conveniências de respeito. Esperneei, contorci-me no espaço como um escorpião pisado. O
diretor arremessou-me ao chão. E, modificando o tom, falou: “Sérgio! ousaste tocar-me!”
– Fui primeiro tocado! repliquei fortemente.
[15] – Criança! feriste um velho!
Reparei que havia no chão fios brancos de bigode.
– Fui vilmente injuriado, disse.
– Ah! meu filho, ferir a um mestre é como ferir ao próprio pai, e os parricidas serão malditos.
O tom comovido deste final inesperado impressionou-me até o íntimo d’alma. Estava vencido. Fiquei por um
[20] minuto horrorizado de mim mesmo. De volta do atordoamento, achei-me só no corredor. A saída dramática
do diretor aumentou-me ainda remorsos. Houve uma reação de esforço moral e desatei nervosamente em
pranto, chorei a valer, amparando-me ao peitoril de uma janela.
Contava certo com um castigo excepcional, uma cominação qualquer do célebre código do arbítrio, em artigo
cujo grau mínimo fosse a expulsão solene.
[25] Esperei um dia, dois dias, três: o castigo não veio. Soube que Bento Alves despedira-se do Ateneu na mesma
tarde do extraordinário desvario. Acreditei algum tempo que a minha impunidade era um caso especial do
afamado sistema das punições morais e que Aristarco delegara ao abutre da minha consciência o encargo
da sua justiça e desafronta. Hoje penso diversamente: não valia a pena perder de uma vez dois pagadores
prontos, só pela futilidade de uma ocorrência, desagradável, não se duvida, mas sem testemunhas.
[30] O caso morreu em segredo de discrição, encontrando-nos eu e o diretor num conchavo bilateral de reserva,
como se nada houvesse.
(POMPEIA, Raul. O Ateneu. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 200-202).
cerca das relações entre o romance e os estilos de época, considere as afirmativas a seguir.
I. O desmascaramento de Aristarco como um adulto que deixa de se guiar apenas pela retidão reflete o vínculo do romance com o Realismo.
II. O destemor do protagonista diante de colegas que representam a perversidade e sua ausência de nobreza perante autoridades aproximam o romance do Romantismo.
III. Os remorsos do protagonista e sua convicção no arrependimento, após o atrito com o diretor, mostram a identificação do romance com o Naturalismo.
IV. A representação do ambiente escolar como local em que a justiça é superada por interesses financeiros remete o romance à focalização de valores conforme certas práticas da ficção modernista.
Assinale a alternativa correta.
[1] Tínhamos lutado em silêncio, sem que nada mais se ouvisse do que os encontrões pelo soalho. No corredor,
entretanto, vimos Aristarco que chegava como em socorro. Bento Alves passou; imobilizou-o com o olhar sem
vista, esgazeado, medonho, de quem acaba de perpetrar um homicídio e desapareceu, trôpego, manchado
de pó, lábios inflamados, desordem nos cabelos.
[5] Aristarco veio sobre mim. Que explicasse a briga! Eu estava como o adversário, empoeirado e sujo como de
rolar sobre escarros.
Respondi-lhe com violência.
“Insolente”! rugiu o diretor. Com uma das mãos prendendo-me a blusa, a estalar os botões, com a outra pela
nuca, ergueu-me ao ar e sacudiu. “Desgraçado! desgraçado, torço-te o pescoço! Bandalhozinho impudente!
[10] Confessa-me tudo ou mato-te.”
Em vez de confessar, segurei-lhe o vigoroso bigode. Fervia-me ainda a excitação do primeiro combate; não
podia olhar conveniências de respeito. Esperneei, contorci-me no espaço como um escorpião pisado. O
diretor arremessou-me ao chão. E, modificando o tom, falou: “Sérgio! ousaste tocar-me!”
– Fui primeiro tocado! repliquei fortemente.
[15] – Criança! feriste um velho!
Reparei que havia no chão fios brancos de bigode.
– Fui vilmente injuriado, disse.
– Ah! meu filho, ferir a um mestre é como ferir ao próprio pai, e os parricidas serão malditos.
O tom comovido deste final inesperado impressionou-me até o íntimo d’alma. Estava vencido. Fiquei por um
[20] minuto horrorizado de mim mesmo. De volta do atordoamento, achei-me só no corredor. A saída dramática
do diretor aumentou-me ainda remorsos. Houve uma reação de esforço moral e desatei nervosamente em
pranto, chorei a valer, amparando-me ao peitoril de uma janela.
Contava certo com um castigo excepcional, uma cominação qualquer do célebre código do arbítrio, em artigo
cujo grau mínimo fosse a expulsão solene.
[25] Esperei um dia, dois dias, três: o castigo não veio. Soube que Bento Alves despedira-se do Ateneu na mesma
tarde do extraordinário desvario. Acreditei algum tempo que a minha impunidade era um caso especial do
afamado sistema das punições morais e que Aristarco delegara ao abutre da minha consciência o encargo
da sua justiça e desafronta. Hoje penso diversamente: não valia a pena perder de uma vez dois pagadores
prontos, só pela futilidade de uma ocorrência, desagradável, não se duvida, mas sem testemunhas.
[30] O caso morreu em segredo de discrição, encontrando-nos eu e o diretor num conchavo bilateral de reserva,
como se nada houvesse.
(POMPEIA, Raul. O Ateneu. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 200-202).
É evidente, no penúltimo parágrafo do trecho transcrito, a presença de dois tempos: o tempo da história e o tempo do discurso. Assinale a alternativa correta quanto a estes tempos.