António Emílio Leite Couto é um dos nomes mais importantes dentre os escritores africanos de língua portuguesa. Moçambicano nascido em 1955, Mia Couto, como é conhecido, é também biólogo e professor universitário, dedicando-se aos estudos de impacto ambiental. O conto a seguir é de sua autoria.
O MENDIGO SEXTA-FEIRA JOGANDO NO MUNDIAL
Lhe concordo, doutor: sou eu que invento minhas doenças. Mas eu, velho e sozinho, o que posso fazer? Estar
doente é minha única maneira de provar que estou vivo. É por isso que frequento o hospital, vezes e vezes,
a exibir minhas maleitas1. Só nesses momentos, doutor, eu sou atendido. Mal atendido, quase sempre. (...)
Desta feita, porém, é diferente. Pois eu, de nome posto de Sexta-Feira, me apresento hoje com séria e
[5] verídica queixa. Venho para aqui todo desclaviculado, uma pancada quase me desombrou. Aconteceu
quando assistia ao jogo do Mundial de Futebol. Desde há um tempo, ando a espreitar na montra2 do
Dubai Shopping, ali na esquina da Avenida Direita. É uma loja de tevês, deixam aquilo ligado na montra
para os pagantes contraírem ganas de comprar. (...)
É ali no passeio que assisto futebol, ali alcanço ilusão de ter familiares. O passeio é um corredor da
[10] enfermaria. Todos nós, os indigentes ali alinhados, ganhamos um tecto3 nesse momento. Um tecto que
nos cobre neste e noutros continentes.
Só há ali um no entanto, doutor. É que sou atacado de um sentimento muito ulceroso enquanto os meus
olhos apanham boleia4 para a Coreia do Sul. O que me inveja não são esses jovens, esses fintabolistas,
todos cheios de vigor. O que eu invejo, doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a
[15] exibir bem alto as suas queixas. A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras para
perante a dor falsa de um futebolista. (...)
Eu sei, doutor, lhe estou roubando o tempo. Vou directo no assunto do meu ombro. Pois aconteceu o
seguinte: o dono da loja deu ontem ordem para limpar o passeio. Não queria ali mendigos e vadios. Que
aquilo afastava a clientela e ele não estava para gastar ecrã5 em olho de pobre. Recusei sair, doutor. O
[20] passeio é pertença de um alguém? Para me retirarem dali foi preciso chamar as forças policiais. (...)
Pois eu, conforme se vê, vim ao hospital não por artimanha, mas por desgraça real. O doutor me olha,
desconfiado, enquanto me vai espreitando os traumatombos. Contrariado, ele lá me coloca sob o olho de
uma máquina radiográfica. Até me atrapalho com tanta deferência. Até hoje, só a polícia me fotografou. (...)
E logo me desando, já as ruas deságuam. Chego à loja dos televisores e me sento entre a mendigagem. (...)
[25] O que eu vi num adocicar de visão foi isto, sem mais nem menos: eu e os mendigos de sexta-feira estamos
no mundial, formamos equipa com fardamento brilhoso. E o doutor é o treinador. E jogamos, neste
momento preciso. Eu sou o extremo esquerdo e vou dominando o esférico, que é um modo de dominar
o mundo. Por trás, os aplausos da multidão. De repente, sofro carga do defesa contrário. Jogo perigoso,
reclamam as vozes aos milhares. Sim, um cartão amarelo, brada o doutor. Porém, o defesa continua a
[30] agressão, cresce o protesto da multidão. Isso, senhor árbitro, cartão vermelho! Boa decisão! Haja no jogo
a justiça que nos falta na vida.
Afinal, o vermelho é do cartão ou será o meu próprio sangue? Não há dúvida: necessito de assistência,
lesionado sem fingimento. Suspendessem o jogo, expulsassem o agressor das quatro linhas. Surpresa
minha – o próprio árbitro é quem me passa a agredir. Nesse momento, me assalta a sensação de um
[35] despertar como se eu saísse da televisão para o passeio. Ainda vejo a matraca do polícia descendo sobre
a minha cabeça. Então, as luzes do estádio se apagam.
MIA COUTO O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
1 Maleitas – doenças de fácil resolução.
2 Montra – vitrina.
3 Tecto – teto.
4 Boleia – carona.
5 Ecrã – tela.
O texto explora a relação entre saúde e formas de inserção social, como se observa na seguinte frase: