Leia o soneto Fanatismo, da poeta portuguesa Florbela Espanca.
Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver.
Não és sequer razão do meu viver
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No mist'rioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!...
"Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!..."
(Sonetos, 1997.)
A temática desse poema pode ser relacionada ao
Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma ideia que me veio sem que nenhum rabo de saia a provocasse. Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar.
A que eu conhecia era a Rosa do Marciano, muito ordinária. Havia conhecido também a Germana e outras dessa laia. Por elas eu julgava todas. Não me sentia, pois, inclinado para nenhuma: o que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de S. Bernardo.
Tentei fantasiar uma criatura alta, sadia, com trinta anos, cabelos pretos – mas parei aí. Sou incapaz de imaginação, e as coisas boas que mencionei vinham destacadas, nunca se juntando para formar um ser completo. [...]
Nesse ponto surgiu-me um pequeno contratempo. Uma tarde surpreendi no oitão da capela [...] Luís Padilha discursando para Marciano e Casimiro Lopes:
– Um roubo. É o que tem sido demonstrado categoricamente pelos filósofos e vem nos livros. Vejam: mais de uma légua de terra, casas, mata, açude, gado, tudo de um homem. Não está certo.
Marciano, mulato esbodegado, regalou-se [...]:– O senhor tem razão, seu Padilha. Eu não entendo, sou bruto, mas perco o sono assuntando nisso. A gente se mata por causa dos outros. É ou não é, Casimiro?
Casimiro Lopes franziu as ventas, declarou que as coisas desde o começo do mundo tinham dono.– Qual dono! gritou Padilha. O que há é que morremos trabalhando para enriquecer os outros.
Saí da sacristia e estourei:– Trabalhando em quê? Em que é que você trabalha, parasita, preguiçoso, lambaio?
– Não é nada não, seu Paulo, defendeu-se Padilha, trêmulo.
[...]Atirei uma porção de desaforos aos dois, mandei que arrumassem a trouxa, fossem para a casa do diabo.
(São Bernardo, 1984.)
São Bernardo é representativo da prosa
Leia e compare os poemas de Mário Quintana e Paulo Leminski.
O poema
Um poema como um gole d’água bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre
na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa
condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.
(Mário Quintana. Aprendiz de feiticeiro, 1950.)
Sacro lavoro
as mãos que escrevem isto
um dia iam ser de sacerdote
transformando o pão e o vinho forte
na carne e sangue de cristo
hoje transformam palavras
num misto entre o óbvio e o nunca visto
(Paulo Leminski. O ex-estranho, 1998.)
As duas obras apresentam como temática comum a