SOBREVIVEREMOS NA TERRA?
Tenho interesse pessoal no tempo. Primeiro, meu best-seller chama-se Uma breve história do
tempo. Segundo, por ser alguém que, aos 21 anos, foi informado pelos médicos de que teria apenas
mais cinco anos de vida e que completou 76 anos em 2018. Tenho uma aguda e desconfortável
consciência da passagem do tempo. Durante a maior parte da minha vida, convivi com a sensação
[5] de que estava fazendo hora extra.
Parece que nosso mundo enfrenta uma instabilidade política maior do que em qualquer outro
momento. Uma grande quantidade de pessoas sente ter ficado para trás. Como resultado, temos
nos voltado para políticos populistas, com experiência de governo limitada e cuja capacidade para
tomar decisões ponderadas em uma crise ainda está para ser testada. A Terra sofre ameaças em
[10] tantas frentes que é difícil permanecer otimista. Os perigos são grandes e numerosos demais. O
planeta está ficando pequeno para nós. Nossos recursos físicos estão se esgotando a uma velocidade
alarmante. A mudança climática foi uma trágica dádiva humana ao planeta. Temperaturas cada vez
mais elevadas, redução da calota polar, desmatamento, superpopulação, doenças, guerras, fome,
escassez de água e extermínio de espécies; todos esses problemas poderiam ser resolvidos, mas
[15] até hoje não foram. O aquecimento global está sendo causado por todos nós. Queremos andar de
carro, viajar e desfrutar um padrão de vida melhor. Mas quando as pessoas se derem conta do que
está acontecendo, pode ser tarde demais.
Estamos no limiar de um período de mudança climática sem precedentes. No entanto, muitos políticos
negam a mudança climática provocada pelo homem, ou a capacidade do homem de revertê-la.
[20] O derretimento das calotas polares ártica e antártica reduz a fração de energia solar refletida de volta
no espaço e aumenta ainda mais a temperatura. A mudança climática pode destruir a Amazônia e
outras florestas tropicais, eliminando uma das principais ferramentas para a remoção do dióxido
de carbono da atmosfera. A elevação da temperatura dos oceanos pode provocar a liberação de
grandes quantidades de dióxido de carbono. Ambos os fenômenos aumentariam o efeito estufa e
[25] exacerbariam o aquecimento global, tornando o clima em nosso planeta parecido com o de Vênus:
atmosfera escaldante e chuva ácida a uma temperatura de 250 ºC. A vida humana seria impossível.
Precisamos ir além do Protocolo de Kyoto – o acordo internacional adotado em 1997 – e cortar
imediatamente as emissões de carbono. Temos a tecnologia. Só precisamos de vontade política.
Quando enfrentamos crises parecidas no passado, havia algum outro lugar para colonizar. Estamos
[30] ficando sem espaço, e o único lugar para ir são outros mundos. Tenho esperança e fé de que nossa
engenhosa raça encontrará uma maneira de escapar dos sombrios grilhões do planeta e, deste
modo, sobreviver ao desastre. A mesma providência talvez não seja possível para os milhões de
outras espécies que vivem na Terra, e isso pesará em nossa consciência.
Mas somos, por natureza, exploradores. Somos motivados pela curiosidade, essa qualidade
[35] humana única. Foi a curiosidade obstinada que levou os exploradores a provar que a Terra não era
plana, e é esse mesmo impulso que nos leva a viajar para as estrelas na velocidade do pensamento,
instigando-nos a realmente chegar lá. E sempre que realizamos um grande salto, como nos pousos
lunares, exaltamos a humanidade, unimos povos e nações, introduzimos novas descobertas e novas
tecnologias. Deixar a Terra exige uma abordagem global combinada – todos devem participar.
STEPHEN HAWKING (1942-2018)
Adaptado de Breves respostas para grandes questões. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.
Como resultado, temos nos voltado para políticos populistas, com experiência de governo limitada e cuja capacidade para tomar decisões ponderadas em uma crise ainda está para ser testada. (l. 7-9)
No trecho acima, Stephen Hawking faz uma afirmação cujo conteúdo se desdobra nas cinco frases subsequentes.
Essas cinco frases cumprem o propósito de:
SOBREVIVEREMOS NA TERRA?
Tenho interesse pessoal no tempo. Primeiro, meu best-seller chama-se Uma breve história do
tempo. Segundo, por ser alguém que, aos 21 anos, foi informado pelos médicos de que teria apenas
mais cinco anos de vida e que completou 76 anos em 2018. Tenho uma aguda e desconfortável
consciência da passagem do tempo. Durante a maior parte da minha vida, convivi com a sensação
[5] de que estava fazendo hora extra.
Parece que nosso mundo enfrenta uma instabilidade política maior do que em qualquer outro
momento. Uma grande quantidade de pessoas sente ter ficado para trás. Como resultado, temos
nos voltado para políticos populistas, com experiência de governo limitada e cuja capacidade para
tomar decisões ponderadas em uma crise ainda está para ser testada. A Terra sofre ameaças em
[10] tantas frentes que é difícil permanecer otimista. Os perigos são grandes e numerosos demais. O
planeta está ficando pequeno para nós. Nossos recursos físicos estão se esgotando a uma velocidade
alarmante. A mudança climática foi uma trágica dádiva humana ao planeta. Temperaturas cada vez
mais elevadas, redução da calota polar, desmatamento, superpopulação, doenças, guerras, fome,
escassez de água e extermínio de espécies; todos esses problemas poderiam ser resolvidos, mas
[15] até hoje não foram. O aquecimento global está sendo causado por todos nós. Queremos andar de
carro, viajar e desfrutar um padrão de vida melhor. Mas quando as pessoas se derem conta do que
está acontecendo, pode ser tarde demais.
Estamos no limiar de um período de mudança climática sem precedentes. No entanto, muitos políticos
negam a mudança climática provocada pelo homem, ou a capacidade do homem de revertê-la.
[20] O derretimento das calotas polares ártica e antártica reduz a fração de energia solar refletida de volta
no espaço e aumenta ainda mais a temperatura. A mudança climática pode destruir a Amazônia e
outras florestas tropicais, eliminando uma das principais ferramentas para a remoção do dióxido
de carbono da atmosfera. A elevação da temperatura dos oceanos pode provocar a liberação de
grandes quantidades de dióxido de carbono. Ambos os fenômenos aumentariam o efeito estufa e
[25] exacerbariam o aquecimento global, tornando o clima em nosso planeta parecido com o de Vênus:
atmosfera escaldante e chuva ácida a uma temperatura de 250 ºC. A vida humana seria impossível.
Precisamos ir além do Protocolo de Kyoto – o acordo internacional adotado em 1997 – e cortar
imediatamente as emissões de carbono. Temos a tecnologia. Só precisamos de vontade política.
Quando enfrentamos crises parecidas no passado, havia algum outro lugar para colonizar. Estamos
[30] ficando sem espaço, e o único lugar para ir são outros mundos. Tenho esperança e fé de que nossa
engenhosa raça encontrará uma maneira de escapar dos sombrios grilhões do planeta e, deste
modo, sobreviver ao desastre. A mesma providência talvez não seja possível para os milhões de
outras espécies que vivem na Terra, e isso pesará em nossa consciência.
Mas somos, por natureza, exploradores. Somos motivados pela curiosidade, essa qualidade
[35] humana única. Foi a curiosidade obstinada que levou os exploradores a provar que a Terra não era
plana, e é esse mesmo impulso que nos leva a viajar para as estrelas na velocidade do pensamento,
instigando-nos a realmente chegar lá. E sempre que realizamos um grande salto, como nos pousos
lunares, exaltamos a humanidade, unimos povos e nações, introduzimos novas descobertas e novas
tecnologias. Deixar a Terra exige uma abordagem global combinada – todos devem participar.
STEPHEN HAWKING (1942-2018)
Adaptado de Breves respostas para grandes questões. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.
Segundo, por ser alguém que, aos 21 anos, foi informado pelos médicos de que teria apenas mais cinco anos de vida e que completou 76 anos em 2018. (l. 2-3)
Os verbos sublinhados descrevem dois fatos que podem ser caracterizados, respectivamente, como:
SOBREVIVEREMOS NA TERRA?
Tenho interesse pessoal no tempo. Primeiro, meu best-seller chama-se Uma breve história do
tempo. Segundo, por ser alguém que, aos 21 anos, foi informado pelos médicos de que teria apenas
mais cinco anos de vida e que completou 76 anos em 2018. Tenho uma aguda e desconfortável
consciência da passagem do tempo. Durante a maior parte da minha vida, convivi com a sensação
[5] de que estava fazendo hora extra.
Parece que nosso mundo enfrenta uma instabilidade política maior do que em qualquer outro
momento. Uma grande quantidade de pessoas sente ter ficado para trás. Como resultado, temos
nos voltado para políticos populistas, com experiência de governo limitada e cuja capacidade para
tomar decisões ponderadas em uma crise ainda está para ser testada. A Terra sofre ameaças em
[10] tantas frentes que é difícil permanecer otimista. Os perigos são grandes e numerosos demais. O
planeta está ficando pequeno para nós. Nossos recursos físicos estão se esgotando a uma velocidade
alarmante. A mudança climática foi uma trágica dádiva humana ao planeta. Temperaturas cada vez
mais elevadas, redução da calota polar, desmatamento, superpopulação, doenças, guerras, fome,
escassez de água e extermínio de espécies; todos esses problemas poderiam ser resolvidos, mas
[15] até hoje não foram. O aquecimento global está sendo causado por todos nós. Queremos andar de
carro, viajar e desfrutar um padrão de vida melhor. Mas quando as pessoas se derem conta do que
está acontecendo, pode ser tarde demais.
Estamos no limiar de um período de mudança climática sem precedentes. No entanto, muitos políticos
negam a mudança climática provocada pelo homem, ou a capacidade do homem de revertê-la.
[20] O derretimento das calotas polares ártica e antártica reduz a fração de energia solar refletida de volta
no espaço e aumenta ainda mais a temperatura. A mudança climática pode destruir a Amazônia e
outras florestas tropicais, eliminando uma das principais ferramentas para a remoção do dióxido
de carbono da atmosfera. A elevação da temperatura dos oceanos pode provocar a liberação de
grandes quantidades de dióxido de carbono. Ambos os fenômenos aumentariam o efeito estufa e
[25] exacerbariam o aquecimento global, tornando o clima em nosso planeta parecido com o de Vênus:
atmosfera escaldante e chuva ácida a uma temperatura de 250 ºC. A vida humana seria impossível.
Precisamos ir além do Protocolo de Kyoto – o acordo internacional adotado em 1997 – e cortar
imediatamente as emissões de carbono. Temos a tecnologia. Só precisamos de vontade política.
Quando enfrentamos crises parecidas no passado, havia algum outro lugar para colonizar. Estamos
[30] ficando sem espaço, e o único lugar para ir são outros mundos. Tenho esperança e fé de que nossa
engenhosa raça encontrará uma maneira de escapar dos sombrios grilhões do planeta e, deste
modo, sobreviver ao desastre. A mesma providência talvez não seja possível para os milhões de
outras espécies que vivem na Terra, e isso pesará em nossa consciência.
Mas somos, por natureza, exploradores. Somos motivados pela curiosidade, essa qualidade
[35] humana única. Foi a curiosidade obstinada que levou os exploradores a provar que a Terra não era
plana, e é esse mesmo impulso que nos leva a viajar para as estrelas na velocidade do pensamento,
instigando-nos a realmente chegar lá. E sempre que realizamos um grande salto, como nos pousos
lunares, exaltamos a humanidade, unimos povos e nações, introduzimos novas descobertas e novas
tecnologias. Deixar a Terra exige uma abordagem global combinada – todos devem participar.
STEPHEN HAWKING (1942-2018)
Adaptado de Breves respostas para grandes questões. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.
Ao enfatizar a atitude de curiosidade no último parágrafo, pode-se inferir a seguinte proposta do autor para o problema que debate:
CIVILIZAÇÃO
A matéria saiu no New York Times, foi publicada na Folha de São Paulo; deveria ser bibliografia
obrigatória do ensino fundamental à pós-graduação, deveria ser colada aos postes, lançada de aviões,
viralizada nas redes sociais, impressa em santinhos, guardada na carteira, no bolso ou no sutiã e lida
toda vez que a desilusão, o desespero, a melancolia ou mesmo o tédio batesse na porta, batesse na aorta:
[5] “Para salvar Stradivarius, uma cidade inteira fica em silêncio”.
Antonio Stradivari viveu entre 1644 e 1737 em Cremona, norte da Itália, cidadezinha que hoje
conta com 72267 habitantes. Durante algumas décadas dos séculos XVII e XVIII, Stradivari
produziu instrumentos de corda, como violinos, cujos sons quase quatro séculos de conhecimento
acumulado não foram capazes de igualar.
[10] Por muito tempo permaneceu um mistério o que fazia aqueles instrumentos tão diferentes dos
demais, fabricados antes ou depois. Estudos recentes, porém, mostraram que, para além da artesania
magistral do luthier*, um tratamento químico dado à madeira, à época da fabricação, interfere na
qualidade do som dos instrumentos.
O tempo de uso também entra na equação: a secura da madeira e a distância entre as fibras, causada
[15] pela oxidação, são razões pelas quais, segundo o dr. Hwan-Ching Tai, autor de um estudo de 2016,
“esses velhos violinos vibram mais livremente, o que permite a eles expressar uma gama mais ampla
de emoções”.
Se é verdade que os violinos Stradivarius, como muitos vinhos, melhoraram com o tempo, é
inexorável que, em algum momento, avinagrem. Pois esse momento se aproxima: depois de quase
[20] quatrocentos anos espalhando a melhor música que já foi ouvida, os violinos, violoncelos e violas
de Cremona estão atingindo seu limite. Logo estarão frágeis demais para serem tocados e serão,
segundo Fausto Cacciatori, curador do Museu do Violino de Cremona, “colocados para dormir”.
Antecipando-se ao sono derradeiro, os moradores de Cremona criaram o Projeto Stradivarius. “Por
cinco semanas, quatro músicos, tocando dois violinos, uma viola e um violoncelo, farão centenas de
[25] escalas e arpejos, usando técnicas diferentes com arcos, ou dedilhando as cordas”, sob “trinta e dois
microfones de alta sensibilidade”. Três engenheiros de som, trancados num quartinho à prova de
qualquer ruído, no auditório do museu, gravarão cada uma das centenas de milhares de variações
sonoras, de modo que, no futuro, será possível compor músicas com o som dos Stradivarius.
O projeto já estava quase saindo do papel em 2017 quando os idealizadores perceberam que o barulho
[30] em torno do museu impossibilitaria as gravações. O prefeito de Cremona, então, permitiu que as ruas
da região fossem fechadas até que a última nota fosse imortalizada. A cidade calou-se e os Stradivarius
começaram a cantar.
Até meados de fevereiro, os 72267 moradores da cidadezinha italiana deixarão de buzinar suas
lambretas, “nonas” evitarão gritar às janelas e amigos cochicharão pelas mesas dos cafés para que
[35] daqui a quatrocentos anos um garoto em Cremona, Mumbai ou Reykjavik possa compor uma
música com as notas únicas e inimitáveis saídas de instrumentos feitos à mão por um homem
que morreu quase um milênio antes de esse garoto nascer. Acho que é disso que estamos falando
quando falamos em civilização.
ANTONIO PRATA
Adaptado de www1.folha.uol.com.br, 27/01/2019.
* Luthier: profissional especializado em instrumentos de cordas.
A matéria saiu no New York Times, foi publicada na Folha de São Paulo; deveria ser bibliografia obrigatória do ensino fundamental à pós-graduação, deveria ser colada aos postes, lançada de aviões, viralizada nas redes sociais, impressa em santinhos, (l. 1-3)
Com base no trecho acima, é possível reconhecer que, para o autor, o conteúdo da notícia comentada se caracteriza por:
CIVILIZAÇÃO
A matéria saiu no New York Times, foi publicada na Folha de São Paulo; deveria ser bibliografia
obrigatória do ensino fundamental à pós-graduação, deveria ser colada aos postes, lançada de aviões,
viralizada nas redes sociais, impressa em santinhos, guardada na carteira, no bolso ou no sutiã e lida
toda vez que a desilusão, o desespero, a melancolia ou mesmo o tédio batesse na porta, batesse na aorta:
[5] “Para salvar Stradivarius, uma cidade inteira fica em silêncio”.
Antonio Stradivari viveu entre 1644 e 1737 em Cremona, norte da Itália, cidadezinha que hoje
conta com 72267 habitantes. Durante algumas décadas dos séculos XVII e XVIII, Stradivari
produziu instrumentos de corda, como violinos, cujos sons quase quatro séculos de conhecimento
acumulado não foram capazes de igualar.
[10] Por muito tempo permaneceu um mistério o que fazia aqueles instrumentos tão diferentes dos
demais, fabricados antes ou depois. Estudos recentes, porém, mostraram que, para além da artesania
magistral do luthier*, um tratamento químico dado à madeira, à época da fabricação, interfere na
qualidade do som dos instrumentos.
O tempo de uso também entra na equação: a secura da madeira e a distância entre as fibras, causada
[15] pela oxidação, são razões pelas quais, segundo o dr. Hwan-Ching Tai, autor de um estudo de 2016,
“esses velhos violinos vibram mais livremente, o que permite a eles expressar uma gama mais ampla
de emoções”.
Se é verdade que os violinos Stradivarius, como muitos vinhos, melhoraram com o tempo, é
inexorável que, em algum momento, avinagrem. Pois esse momento se aproxima: depois de quase
[20] quatrocentos anos espalhando a melhor música que já foi ouvida, os violinos, violoncelos e violas
de Cremona estão atingindo seu limite. Logo estarão frágeis demais para serem tocados e serão,
segundo Fausto Cacciatori, curador do Museu do Violino de Cremona, “colocados para dormir”.
Antecipando-se ao sono derradeiro, os moradores de Cremona criaram o Projeto Stradivarius. “Por
cinco semanas, quatro músicos, tocando dois violinos, uma viola e um violoncelo, farão centenas de
[25] escalas e arpejos, usando técnicas diferentes com arcos, ou dedilhando as cordas”, sob “trinta e dois
microfones de alta sensibilidade”. Três engenheiros de som, trancados num quartinho à prova de
qualquer ruído, no auditório do museu, gravarão cada uma das centenas de milhares de variações
sonoras, de modo que, no futuro, será possível compor músicas com o som dos Stradivarius.
O projeto já estava quase saindo do papel em 2017 quando os idealizadores perceberam que o barulho
[30] em torno do museu impossibilitaria as gravações. O prefeito de Cremona, então, permitiu que as ruas
da região fossem fechadas até que a última nota fosse imortalizada. A cidade calou-se e os Stradivarius
começaram a cantar.
Até meados de fevereiro, os 72267 moradores da cidadezinha italiana deixarão de buzinar suas
lambretas, “nonas” evitarão gritar às janelas e amigos cochicharão pelas mesas dos cafés para que
[35] daqui a quatrocentos anos um garoto em Cremona, Mumbai ou Reykjavik possa compor uma
música com as notas únicas e inimitáveis saídas de instrumentos feitos à mão por um homem
que morreu quase um milênio antes de esse garoto nascer. Acho que é disso que estamos falando
quando falamos em civilização.
ANTONIO PRATA
Adaptado de www1.folha.uol.com.br, 27/01/2019.
* Luthier: profissional especializado em instrumentos de cordas.
Para valorizar poeticamente os violinos, combinam-se duas figuras de linguagem, o eufemismo e a personificação.
Essa combinação se encontra em:
CIVILIZAÇÃO
A matéria saiu no New York Times, foi publicada na Folha de São Paulo; deveria ser bibliografia
obrigatória do ensino fundamental à pós-graduação, deveria ser colada aos postes, lançada de aviões,
viralizada nas redes sociais, impressa em santinhos, guardada na carteira, no bolso ou no sutiã e lida
toda vez que a desilusão, o desespero, a melancolia ou mesmo o tédio batesse na porta, batesse na aorta:
[5] “Para salvar Stradivarius, uma cidade inteira fica em silêncio”.
Antonio Stradivari viveu entre 1644 e 1737 em Cremona, norte da Itália, cidadezinha que hoje
conta com 72267 habitantes. Durante algumas décadas dos séculos XVII e XVIII, Stradivari
produziu instrumentos de corda, como violinos, cujos sons quase quatro séculos de conhecimento
acumulado não foram capazes de igualar.
[10] Por muito tempo permaneceu um mistério o que fazia aqueles instrumentos tão diferentes dos
demais, fabricados antes ou depois. Estudos recentes, porém, mostraram que, para além da artesania
magistral do luthier*, um tratamento químico dado à madeira, à época da fabricação, interfere na
qualidade do som dos instrumentos.
O tempo de uso também entra na equação: a secura da madeira e a distância entre as fibras, causada
[15] pela oxidação, são razões pelas quais, segundo o dr. Hwan-Ching Tai, autor de um estudo de 2016,
“esses velhos violinos vibram mais livremente, o que permite a eles expressar uma gama mais ampla
de emoções”.
Se é verdade que os violinos Stradivarius, como muitos vinhos, melhoraram com o tempo, é
inexorável que, em algum momento, avinagrem. Pois esse momento se aproxima: depois de quase
[20] quatrocentos anos espalhando a melhor música que já foi ouvida, os violinos, violoncelos e violas
de Cremona estão atingindo seu limite. Logo estarão frágeis demais para serem tocados e serão,
segundo Fausto Cacciatori, curador do Museu do Violino de Cremona, “colocados para dormir”.
Antecipando-se ao sono derradeiro, os moradores de Cremona criaram o Projeto Stradivarius. “Por
cinco semanas, quatro músicos, tocando dois violinos, uma viola e um violoncelo, farão centenas de
[25] escalas e arpejos, usando técnicas diferentes com arcos, ou dedilhando as cordas”, sob “trinta e dois
microfones de alta sensibilidade”. Três engenheiros de som, trancados num quartinho à prova de
qualquer ruído, no auditório do museu, gravarão cada uma das centenas de milhares de variações
sonoras, de modo que, no futuro, será possível compor músicas com o som dos Stradivarius.
O projeto já estava quase saindo do papel em 2017 quando os idealizadores perceberam que o barulho
[30] em torno do museu impossibilitaria as gravações. O prefeito de Cremona, então, permitiu que as ruas
da região fossem fechadas até que a última nota fosse imortalizada. A cidade calou-se e os Stradivarius
começaram a cantar.
Até meados de fevereiro, os 72267 moradores da cidadezinha italiana deixarão de buzinar suas
lambretas, “nonas” evitarão gritar às janelas e amigos cochicharão pelas mesas dos cafés para que
[35] daqui a quatrocentos anos um garoto em Cremona, Mumbai ou Reykjavik possa compor uma
música com as notas únicas e inimitáveis saídas de instrumentos feitos à mão por um homem
que morreu quase um milênio antes de esse garoto nascer. Acho que é disso que estamos falando
quando falamos em civilização.
ANTONIO PRATA
Adaptado de www1.folha.uol.com.br, 27/01/2019.
* Luthier: profissional especializado em instrumentos de cordas.
Acho que é disso que estamos falando quando falamos em civilização. (l. 37-38)
O termo “disso” se refere a praticamente toda a crônica de Antonio Prata e pode ser resumido como o esforço da comunidade para: