Há dias conheci uma mulher do interior da Zambézia. Tem cinco filhos, já crescidos. O primeiro, um mulato esbelto, é dos portugueses que a violaram durante a guerra colonial. O segundo, um preto, elegante e forte como um guerreiro, é fruto de outra violação dos guerrilheiros de libertação da mesma guerra colonial. O terceiro, outro mulato, mimoso como um gato, é dos comandos rodesianos brancos, que arrasaram esta terra para aniquilar as bases dos guerrilheiros do Zimbabwe. O quarto é dos rebeldes que fizeram a guerra civil no interior do país. A primeira e a segunda vez foi violada, mas à terceira e à quarta entregou-se de livre vontade, porque se sentia especializada em violação sexual. O quinto é de um homem com quem se deitou por amor pela primeira vez.
Essa mulher carregou a história de todas as guerras do país num só ventre. (cap. 37)
O sentido de “humanidade”, criticado no texto de Ailton Krenak, é chave para a compreensão de um contexto de extrema violência, como o narrado no fragmento.
Nesse contexto de colonização, o corpo feminino está associado à imagem de:
Ideias para adiar o fim do mundo
Quando se completaram quinhentos anos da travessia de Cabral e companhia, recusei um convite
para vir a Portugal. Eu disse: “Essa é uma típica festa portuguesa, vocês vão celebrar a invasão do
meu canto do mundo. Não vou, não”. Porém, não transformei isso numa rixa e pensei: “Vamos ver
o que acontece no futuro”.
[5] Em 2017, ano em que Lisboa foi capital ibero-americana de cultura, ocorreu um ciclo de eventos
muito interessante, com performances de teatro, mostra de cinema e palestras. Fui convidado a
participar, e, dessa vez, nosso amigo Eduardo Viveiros de Castro faria uma conferência no teatro
Maria Matos, chamada “Os involuntários da pátria”. Então, pensei: “Esse assunto me interessa, vou
também”. No dia seguinte ao da fala do Eduardo, tive a oportunidade de encontrar muita gente que
[10] se interessou pela estreia do documentário Ailton Krenak e o sonho da pedra, dirigido por Marco
Altberg. O filme é uma boa introdução ao tema de que quero tratar: como é que, ao longo dos
últimos 2 mil ou 3 mil anos, nós construímos a ideia de humanidade? Será que ela não está na base
de muitas das escolhas erradas que fizemos, justificando o uso da violência?
A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na
[15] premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade
obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi
justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma
concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história.
Agora, no começo do século XXI, algumas colaborações entre pensadores com visões distintas,
[20] originadas em diferentes culturas, possibilitam uma crítica dessa ideia. Somos mesmo uma
humanidade?
Pensemos nas nossas instituições mais bem consolidadas, como universidades ou organismos
multilaterais, que surgiram no século XX: Banco Mundial, Organização dos Estados Americanos
(OEA), Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das Nações Unidas para a Educação,
[25] a Ciência e a Cultura (Unesco). Quando a gente quis criar uma reserva da biosfera em uma região
do Brasil, foi preciso justificar para a Unesco por que era importante que o planeta não fosse
devorado pela mineração. Para essa instituição, é como se bastasse manter apenas alguns lugares
como amostra grátis da Terra. Se sobrevivermos, vamos brigar pelos pedaços de planeta que a gente
não comeu, e os nossos netos ou tataranetos — ou os netos de nossos tataranetos — vão poder
[30] passear para ver como era a Terra no passado. Essas agências e instituições foram configuradas e
mantidas como estruturas dessa humanidade. E nós legitimamos sua perpetuação, aceitamos suas
decisões, que muitas vezes são ruins e nos causam perdas, porque estão a serviço da humanidade
que pensamos ser.
Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo
[35] exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e
em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus
coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as
pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão
sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.
AILTON KRENAK Adaptado de Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Em Ideias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak questiona o que se convencionou chamar “humanidade”, em especial a partir do século XVI.
Esse questionamento deve-se principalmente ao fato de o sentido dessa palavra poder ser associado, na perspectiva de Krenak, à ideia de:
Oito centímetros impediram o sepultamento de D. Pedro I
O governo militar, sob a chefia do general Emílio Garrastazu Médici, não poupou esforços para transformar as comemorações dos 150 anos da Independência numa enorme celebração nacional. Seu ponto alto? A vinda de Portugal dos restos mortais de nosso primeiro imperador, Dom Pedro I. Em 1971, o presidente de Portugal concordou em transladar e presentear o Brasil com os restos mortais do imperador, deixando claro que o coração não viria e permaneceria na cidade do Porto, já que o próprio D. Pedro o deixou, em testamento, à cidade. O presidente Médici expressou, em rede nacional de televisão e rádio: “Brasileiros, não posso esconder minha emoção. Fala por si mesmo este fato que nenhuma eloquência poderia superar: no ano em que celebramos o Sesquicentenário da nossa Independência, regressará ao Brasil o corpo daquele que, em Sete de Setembro, às margens do Ipiranga, com a bravura, o arroubo e a paixão que eram a marca de sua personalidade, proclamou livres estas terras.” Mas, quase como uma anedota, o caixão feito em Portugal não coube no lugar onde deveria ser colocado na Capela Imperial, no Ipiranga. Apenas quatro anos depois do Sesquicentenário da Independência, o sarcófago de D. Pedro I foi devidamente disposto no mausoléu para ele construído.
LIZ BATISTA Adaptado de m.acervo.estadao.com.br, 15/02/2013.
Conserva de imperador
O governo brasileiro requereu a Portugal que, no âmbito das comemorações dos 200 anos da Independência, enviasse para o Brasil o coração de Dom Pedro, guardado numa igreja da cidade do Porto. O pedido tem o seu quê de bizarro. Imagino que a miudeza real vá ser exposta e contemplada no Brasil, o que me parece sinceramente ficar aquém da data. Uma celebração competente do Bicentenário da Independência devia incluir, além do coração de Dom Pedro, um rim de José Bonifácio, o pâncreas de Thomas Cochrane, o fígado de Cipriano Barata e, talvez para dar um toque de ironia à cerimônia, um dente de Tiradentes. Creio que, com esse rodízio de vísceras, ficaria a efeméride mais bem assinalada.
RICARDO ARAÚJO PEREIRA Adaptado de m.folha.uol.com.br, 09/07/2022.
Os textos apresentam ações governamentais associadas ao Sesquicentário da Independência do Brasil, em 1972, e a seu Bicentenário, em 2022.
Um aspecto comum dessas ações governamentais é: