TEXTO
(...) Despertei manhã adiantada. O quarto em que dormi dava para a sala de jantar. Penetrando aí,
dei com dona Escolástica, de plácidos olhos verdes, a vigiar atentamente o pequeno Aleixo Manuel,
que tomava uma ligeira refeição matinal, antes de ir para o colégio. Gonzaga de Sá não estava.
Ao entrar, o menino levantou a cabeça da xícara e pousou por instantes os seus grandes olhos
[5] negros, enervados de prata, sobre mim, interrogativamente, como sempre.
Vendo aquela criança, não sei que longínquas lembranças da minha infância me vieram. Eram as
esperanças da minha iniciação nas coisas obscuras do alfabeto. Eram os afagos e espantos da minha
professora; eram também os dolorosos desenganos desta minha mocidade irrequieta e desigual...
(...) Ele me olhou, fiz a saudação matinal, respondeu-me e me sentei. A velha dona Escolástica
[10] informou-me, então, que o irmão erguera-se cedo e trabalhava na sala. Demorei-me uns tempos a
conversar e, de caminho, falei à criança.
(...)
– Em que livro estás?
– Terceiro.
– Com nove anos, vais bem – fiz eu animando-o. – Já dás a História do Brasil?
[15] – Sim, senhor.
– Quem descobriu o Brasil?
– Pedro Álvares Cabral.
– E a América?
– Cristóvão Colombo.
[20] – Qual foi a primeira descoberta, a da América ou a do Brasil?
– A da América.
– Por quê?
– Porque o Brasil faz parte da América, e quem descobriu a América, também o Brasil, porque ele
está na América.
[25] – Então foi Cristóvão Colombo quem descobriu o Brasil? Que respondes?
O rapaz calou-se, franziu um instante as sobrancelhas e, depois, disse com toda a firmeza:
– Não. Colombo foi quem viu pela primeira vez um lugar da América, por isso se diz que descobriu
“ela” toda; mas Cabral viu depois, pela primeira vez, lugares do Brasil, por isso se diz que
descobriu o Brasil.
[30] A custo, disfarcei a minha surpresa diante da clareza do raciocínio do pequeno. Não quis com
um elogio caloroso aguçar-lhe a vaidade; desejava que a sua inteligência fosse crescendo sem
consciência de si própria; e então, quando fosse bem forte, ele tomasse conhecimento da sua
capacidade, como uma revelação, como uma surpresa. Limitei-me a dizer-lhe que estava certo e
passei a perguntar outras coisas.
[35] Por fim, depois de ter respondido às minhas perguntas com uma prontidão que me maravilhou,
passou a correia da mala pelo pescoço, apanhou a lousa e despediu-se. (...)
– É inteligente o rapaz – disse eu à velha senhora.
– Bastante. Que desejo de saber tem este pequeno! O senhor nem imagina! Brinca, é verdade; mas,
à noitinha, agarra os livros, os deveres e os vai estudando, sem que ninguém o obrigue. Quem me
[40] dera que fosse assim até ao fim!
– Por que não irá?
– Ora! Há tantos que como ele começam tão bem e...
– É verdade! Mas virá deles mesmos a perda da vontade, o enfraquecimento do amor, da dedicação
aos estudos; ou tem tal fato raízes em motivos externos, estranhos a eles que, só numa idade mais
[45] avançada, acabam percebendo, quando a consciência lhes revela o justo e o injusto, fazendo que
se lhes enfraqueça deploravelmente o ímpeto inicial?
Cri que dona Escolástica não me compreendera, e procurei dizer a mesma coisa por outras palavras.
– Quem sabe se, na primeira idade, eles estudam porque desconhecem certas coisas que, sabidas
mais tarde, lhes fazem desanimar e sentir vão o estudo?
[50] – Qual, doutor! (Ela me tratava dessa maneira.) – É assim mesmo!
(...)
Tomei café e fui ter com Gonzaga de Sá na sua vasta sala de trabalho. (...)
LIMA BARRETO Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Rio de Janeiro: Ática, s/d.
Porque o Brasil faz parte da América, e quem descobriu a América, também o Brasil, porque ele está na América. (l. 23-24)
Na fala da personagem, identifica-se a organização de um raciocínio do seguinte tipo:
TEXTO
(...) Despertei manhã adiantada. O quarto em que dormi dava para a sala de jantar. Penetrando aí,
dei com dona Escolástica, de plácidos olhos verdes, a vigiar atentamente o pequeno Aleixo Manuel,
que tomava uma ligeira refeição matinal, antes de ir para o colégio. Gonzaga de Sá não estava.
Ao entrar, o menino levantou a cabeça da xícara e pousou por instantes os seus grandes olhos
[5] negros, enervados de prata, sobre mim, interrogativamente, como sempre.
Vendo aquela criança, não sei que longínquas lembranças da minha infância me vieram. Eram as
esperanças da minha iniciação nas coisas obscuras do alfabeto. Eram os afagos e espantos da minha
professora; eram também os dolorosos desenganos desta minha mocidade irrequieta e desigual...
(...) Ele me olhou, fiz a saudação matinal, respondeu-me e me sentei. A velha dona Escolástica
[10] informou-me, então, que o irmão erguera-se cedo e trabalhava na sala. Demorei-me uns tempos a
conversar e, de caminho, falei à criança.
(...)
– Em que livro estás?
– Terceiro.
– Com nove anos, vais bem – fiz eu animando-o. – Já dás a História do Brasil?
[15] – Sim, senhor.
– Quem descobriu o Brasil?
– Pedro Álvares Cabral.
– E a América?
– Cristóvão Colombo.
[20] – Qual foi a primeira descoberta, a da América ou a do Brasil?
– A da América.
– Por quê?
– Porque o Brasil faz parte da América, e quem descobriu a América, também o Brasil, porque ele
está na América.
[25] – Então foi Cristóvão Colombo quem descobriu o Brasil? Que respondes?
O rapaz calou-se, franziu um instante as sobrancelhas e, depois, disse com toda a firmeza:
– Não. Colombo foi quem viu pela primeira vez um lugar da América, por isso se diz que descobriu
“ela” toda; mas Cabral viu depois, pela primeira vez, lugares do Brasil, por isso se diz que
descobriu o Brasil.
[30] A custo, disfarcei a minha surpresa diante da clareza do raciocínio do pequeno. Não quis com
um elogio caloroso aguçar-lhe a vaidade; desejava que a sua inteligência fosse crescendo sem
consciência de si própria; e então, quando fosse bem forte, ele tomasse conhecimento da sua
capacidade, como uma revelação, como uma surpresa. Limitei-me a dizer-lhe que estava certo e
passei a perguntar outras coisas.
[35] Por fim, depois de ter respondido às minhas perguntas com uma prontidão que me maravilhou,
passou a correia da mala pelo pescoço, apanhou a lousa e despediu-se. (...)
– É inteligente o rapaz – disse eu à velha senhora.
– Bastante. Que desejo de saber tem este pequeno! O senhor nem imagina! Brinca, é verdade; mas,
à noitinha, agarra os livros, os deveres e os vai estudando, sem que ninguém o obrigue. Quem me
[40] dera que fosse assim até ao fim!
– Por que não irá?
– Ora! Há tantos que como ele começam tão bem e...
– É verdade! Mas virá deles mesmos a perda da vontade, o enfraquecimento do amor, da dedicação
aos estudos; ou tem tal fato raízes em motivos externos, estranhos a eles que, só numa idade mais
[45] avançada, acabam percebendo, quando a consciência lhes revela o justo e o injusto, fazendo que
se lhes enfraqueça deploravelmente o ímpeto inicial?
Cri que dona Escolástica não me compreendera, e procurei dizer a mesma coisa por outras palavras.
– Quem sabe se, na primeira idade, eles estudam porque desconhecem certas coisas que, sabidas
mais tarde, lhes fazem desanimar e sentir vão o estudo?
[50] – Qual, doutor! (Ela me tratava dessa maneira.) – É assim mesmo!
(...)
Tomei café e fui ter com Gonzaga de Sá na sua vasta sala de trabalho. (...)
LIMA BARRETO Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Rio de Janeiro: Ática, s/d.
Em relação à frase inicial do terceiro parágrafo, as duas frases que a sucedem funcionam como:
TEXTO
(...) Despertei manhã adiantada. O quarto em que dormi dava para a sala de jantar. Penetrando aí,
dei com dona Escolástica, de plácidos olhos verdes, a vigiar atentamente o pequeno Aleixo Manuel,
que tomava uma ligeira refeição matinal, antes de ir para o colégio. Gonzaga de Sá não estava.
Ao entrar, o menino levantou a cabeça da xícara e pousou por instantes os seus grandes olhos
[5] negros, enervados de prata, sobre mim, interrogativamente, como sempre.
Vendo aquela criança, não sei que longínquas lembranças da minha infância me vieram. Eram as
esperanças da minha iniciação nas coisas obscuras do alfabeto. Eram os afagos e espantos da minha
professora; eram também os dolorosos desenganos desta minha mocidade irrequieta e desigual...
(...) Ele me olhou, fiz a saudação matinal, respondeu-me e me sentei. A velha dona Escolástica
[10] informou-me, então, que o irmão erguera-se cedo e trabalhava na sala. Demorei-me uns tempos a
conversar e, de caminho, falei à criança.
(...)
– Em que livro estás?
– Terceiro.
– Com nove anos, vais bem – fiz eu animando-o. – Já dás a História do Brasil?
[15] – Sim, senhor.
– Quem descobriu o Brasil?
– Pedro Álvares Cabral.
– E a América?
– Cristóvão Colombo.
[20] – Qual foi a primeira descoberta, a da América ou a do Brasil?
– A da América.
– Por quê?
– Porque o Brasil faz parte da América, e quem descobriu a América, também o Brasil, porque ele
está na América.
[25] – Então foi Cristóvão Colombo quem descobriu o Brasil? Que respondes?
O rapaz calou-se, franziu um instante as sobrancelhas e, depois, disse com toda a firmeza:
– Não. Colombo foi quem viu pela primeira vez um lugar da América, por isso se diz que descobriu
“ela” toda; mas Cabral viu depois, pela primeira vez, lugares do Brasil, por isso se diz que
descobriu o Brasil.
[30] A custo, disfarcei a minha surpresa diante da clareza do raciocínio do pequeno. Não quis com
um elogio caloroso aguçar-lhe a vaidade; desejava que a sua inteligência fosse crescendo sem
consciência de si própria; e então, quando fosse bem forte, ele tomasse conhecimento da sua
capacidade, como uma revelação, como uma surpresa. Limitei-me a dizer-lhe que estava certo e
passei a perguntar outras coisas.
[35] Por fim, depois de ter respondido às minhas perguntas com uma prontidão que me maravilhou,
passou a correia da mala pelo pescoço, apanhou a lousa e despediu-se. (...)
– É inteligente o rapaz – disse eu à velha senhora.
– Bastante. Que desejo de saber tem este pequeno! O senhor nem imagina! Brinca, é verdade; mas,
à noitinha, agarra os livros, os deveres e os vai estudando, sem que ninguém o obrigue. Quem me
[40] dera que fosse assim até ao fim!
– Por que não irá?
– Ora! Há tantos que como ele começam tão bem e...
– É verdade! Mas virá deles mesmos a perda da vontade, o enfraquecimento do amor, da dedicação
aos estudos; ou tem tal fato raízes em motivos externos, estranhos a eles que, só numa idade mais
[45] avançada, acabam percebendo, quando a consciência lhes revela o justo e o injusto, fazendo que
se lhes enfraqueça deploravelmente o ímpeto inicial?
Cri que dona Escolástica não me compreendera, e procurei dizer a mesma coisa por outras palavras.
– Quem sabe se, na primeira idade, eles estudam porque desconhecem certas coisas que, sabidas
mais tarde, lhes fazem desanimar e sentir vão o estudo?
[50] – Qual, doutor! (Ela me tratava dessa maneira.) – É assim mesmo!
(...)
Tomei café e fui ter com Gonzaga de Sá na sua vasta sala de trabalho. (...)
LIMA BARRETO Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Rio de Janeiro: Ática, s/d.
Não. Colombo foi quem viu pela primeira vez um lugar da América, por isso se diz que descobriu “ela” toda; (l. 27-28)
No trecho, o uso das aspas assinala a seguinte questão de linguagem:
TEXTO
(...) Despertei manhã adiantada. O quarto em que dormi dava para a sala de jantar. Penetrando aí,
dei com dona Escolástica, de plácidos olhos verdes, a vigiar atentamente o pequeno Aleixo Manuel,
que tomava uma ligeira refeição matinal, antes de ir para o colégio. Gonzaga de Sá não estava.
Ao entrar, o menino levantou a cabeça da xícara e pousou por instantes os seus grandes olhos
[5] negros, enervados de prata, sobre mim, interrogativamente, como sempre.
Vendo aquela criança, não sei que longínquas lembranças da minha infância me vieram. Eram as
esperanças da minha iniciação nas coisas obscuras do alfabeto. Eram os afagos e espantos da minha
professora; eram também os dolorosos desenganos desta minha mocidade irrequieta e desigual...
(...) Ele me olhou, fiz a saudação matinal, respondeu-me e me sentei. A velha dona Escolástica
[10] informou-me, então, que o irmão erguera-se cedo e trabalhava na sala. Demorei-me uns tempos a
conversar e, de caminho, falei à criança.
(...)
– Em que livro estás?
– Terceiro.
– Com nove anos, vais bem – fiz eu animando-o. – Já dás a História do Brasil?
[15] – Sim, senhor.
– Quem descobriu o Brasil?
– Pedro Álvares Cabral.
– E a América?
– Cristóvão Colombo.
[20] – Qual foi a primeira descoberta, a da América ou a do Brasil?
– A da América.
– Por quê?
– Porque o Brasil faz parte da América, e quem descobriu a América, também o Brasil, porque ele
está na América.
[25] – Então foi Cristóvão Colombo quem descobriu o Brasil? Que respondes?
O rapaz calou-se, franziu um instante as sobrancelhas e, depois, disse com toda a firmeza:
– Não. Colombo foi quem viu pela primeira vez um lugar da América, por isso se diz que descobriu
“ela” toda; mas Cabral viu depois, pela primeira vez, lugares do Brasil, por isso se diz que
descobriu o Brasil.
[30] A custo, disfarcei a minha surpresa diante da clareza do raciocínio do pequeno. Não quis com
um elogio caloroso aguçar-lhe a vaidade; desejava que a sua inteligência fosse crescendo sem
consciência de si própria; e então, quando fosse bem forte, ele tomasse conhecimento da sua
capacidade, como uma revelação, como uma surpresa. Limitei-me a dizer-lhe que estava certo e
passei a perguntar outras coisas.
[35] Por fim, depois de ter respondido às minhas perguntas com uma prontidão que me maravilhou,
passou a correia da mala pelo pescoço, apanhou a lousa e despediu-se. (...)
– É inteligente o rapaz – disse eu à velha senhora.
– Bastante. Que desejo de saber tem este pequeno! O senhor nem imagina! Brinca, é verdade; mas,
à noitinha, agarra os livros, os deveres e os vai estudando, sem que ninguém o obrigue. Quem me
[40] dera que fosse assim até ao fim!
– Por que não irá?
– Ora! Há tantos que como ele começam tão bem e...
– É verdade! Mas virá deles mesmos a perda da vontade, o enfraquecimento do amor, da dedicação
aos estudos; ou tem tal fato raízes em motivos externos, estranhos a eles que, só numa idade mais
[45] avançada, acabam percebendo, quando a consciência lhes revela o justo e o injusto, fazendo que
se lhes enfraqueça deploravelmente o ímpeto inicial?
Cri que dona Escolástica não me compreendera, e procurei dizer a mesma coisa por outras palavras.
– Quem sabe se, na primeira idade, eles estudam porque desconhecem certas coisas que, sabidas
mais tarde, lhes fazem desanimar e sentir vão o estudo?
[50] – Qual, doutor! (Ela me tratava dessa maneira.) – É assim mesmo!
(...)
Tomei café e fui ter com Gonzaga de Sá na sua vasta sala de trabalho. (...)
LIMA BARRETO Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Rio de Janeiro: Ática, s/d.
Ora! Há tantos que como ele começam tão bem e... (l. 42)
Na frase, a personagem emprega a forma singular ele, mas, no parágrafo seguinte, o narrador-personagem passa a empregar o plural eles.
Considerando o ponto de vista do narrador-personagem, a mudança para a forma plural se explica pela seguinte razão:
TEXTO
(...) Despertei manhã adiantada. O quarto em que dormi dava para a sala de jantar. Penetrando aí,
dei com dona Escolástica, de plácidos olhos verdes, a vigiar atentamente o pequeno Aleixo Manuel,
que tomava uma ligeira refeição matinal, antes de ir para o colégio. Gonzaga de Sá não estava.
Ao entrar, o menino levantou a cabeça da xícara e pousou por instantes os seus grandes olhos
[5] negros, enervados de prata, sobre mim, interrogativamente, como sempre.
Vendo aquela criança, não sei que longínquas lembranças da minha infância me vieram. Eram as
esperanças da minha iniciação nas coisas obscuras do alfabeto. Eram os afagos e espantos da minha
professora; eram também os dolorosos desenganos desta minha mocidade irrequieta e desigual...
(...) Ele me olhou, fiz a saudação matinal, respondeu-me e me sentei. A velha dona Escolástica
[10] informou-me, então, que o irmão erguera-se cedo e trabalhava na sala. Demorei-me uns tempos a
conversar e, de caminho, falei à criança.
(...)
– Em que livro estás?
– Terceiro.
– Com nove anos, vais bem – fiz eu animando-o. – Já dás a História do Brasil?
[15] – Sim, senhor.
– Quem descobriu o Brasil?
– Pedro Álvares Cabral.
– E a América?
– Cristóvão Colombo.
[20] – Qual foi a primeira descoberta, a da América ou a do Brasil?
– A da América.
– Por quê?
– Porque o Brasil faz parte da América, e quem descobriu a América, também o Brasil, porque ele
está na América.
[25] – Então foi Cristóvão Colombo quem descobriu o Brasil? Que respondes?
O rapaz calou-se, franziu um instante as sobrancelhas e, depois, disse com toda a firmeza:
– Não. Colombo foi quem viu pela primeira vez um lugar da América, por isso se diz que descobriu
“ela” toda; mas Cabral viu depois, pela primeira vez, lugares do Brasil, por isso se diz que
descobriu o Brasil.
[30] A custo, disfarcei a minha surpresa diante da clareza do raciocínio do pequeno. Não quis com
um elogio caloroso aguçar-lhe a vaidade; desejava que a sua inteligência fosse crescendo sem
consciência de si própria; e então, quando fosse bem forte, ele tomasse conhecimento da sua
capacidade, como uma revelação, como uma surpresa. Limitei-me a dizer-lhe que estava certo e
passei a perguntar outras coisas.
[35] Por fim, depois de ter respondido às minhas perguntas com uma prontidão que me maravilhou,
passou a correia da mala pelo pescoço, apanhou a lousa e despediu-se. (...)
– É inteligente o rapaz – disse eu à velha senhora.
– Bastante. Que desejo de saber tem este pequeno! O senhor nem imagina! Brinca, é verdade; mas,
à noitinha, agarra os livros, os deveres e os vai estudando, sem que ninguém o obrigue. Quem me
[40] dera que fosse assim até ao fim!
– Por que não irá?
– Ora! Há tantos que como ele começam tão bem e...
– É verdade! Mas virá deles mesmos a perda da vontade, o enfraquecimento do amor, da dedicação
aos estudos; ou tem tal fato raízes em motivos externos, estranhos a eles que, só numa idade mais
[45] avançada, acabam percebendo, quando a consciência lhes revela o justo e o injusto, fazendo que
se lhes enfraqueça deploravelmente o ímpeto inicial?
Cri que dona Escolástica não me compreendera, e procurei dizer a mesma coisa por outras palavras.
– Quem sabe se, na primeira idade, eles estudam porque desconhecem certas coisas que, sabidas
mais tarde, lhes fazem desanimar e sentir vão o estudo?
[50] – Qual, doutor! (Ela me tratava dessa maneira.) – É assim mesmo!
(...)
Tomei café e fui ter com Gonzaga de Sá na sua vasta sala de trabalho. (...)
LIMA BARRETO Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Rio de Janeiro: Ática, s/d.
desconhecem certas coisas que, sabidas mais tarde, lhes fazem desanimar e sentir vão o estudo? (l. 48-49)
No fragmento, a palavra sublinhada expressa o valor semântico de:
TEXTO
PERGUNTAR É PRECISO?
Não deixa de ser curioso perceber que a escola vive de fazer perguntas, mas pouco ensina a perguntar.
Por que isso acontece?
Talvez porque as perguntas que se façam na escola não sejam, em sua maioria, perguntas autênticas.
O professor que pergunta já sabe a resposta. Logo, suas perguntas são antes retóricas, formuladas não
[5] para se explorar uma dúvida real, mas sim para levar os alunos à resposta que ele deseja. O autor de uma
pergunta autêntica, ao contrário, não sabe previamente a sua resposta – ele pergunta porque não sabe
e quer saber.
A caricatura de uma aula de perguntas inautênticas é realizada por aquele professor que fala com lacunas:
“quem descobriu o Brasil foi Pedro Álvares Ca...? ...Bral, muito bem!”. Mas, como chamar a pergunta
[10] retórica de inautêntica sugere que ela é apenas negativa, chamemo-la de escolar, pois também pode
ser útil tanto para fixar o conhecimento quanto para avaliá-lo (o que não ocorre na caricatura anterior).
No entanto, ainda assim precisamos reconhecer que perguntas desse tipo não são suficientes para
desenvolver o pensamento do aluno e para que ele próprio produza o seu conhecimento. Torna-se
então necessário, em primeiro lugar, estimulá-lo com perguntas autênticas, que de fato o levem a
[15] pensar à frente do que está sendo ensinado; torna-se também necessário, em segundo lugar, levá-lo a
fazer perguntas autênticas, quer para o professor quer para si mesmo.
Por que o professor precisa fazer também perguntas autênticas? Primeiro e mais do que tudo, para dar
o exemplo de uma maneira de pensar curiosa, inquisitiva, especulativa, ou seja, própria do pensamento
científico. Não há método de educação mais eficiente do que o velho método do exemplo. Se, como
[20] professor, passo para meu aluno o exemplo de uma atitude especulativa e responsável, levo-o a ter a
mesma atitude, ou seja, ensino-lhe o principal: não fórmulas decoradas, mas sim como chegar por si
mesmo às fórmulas existentes e ainda produzir novas, mais eficientes. Outra razão para o professor se
habituar a fazer perguntas autênticas para os alunos, dividindo dúvidas reais, encontra-se na conhecida
definição de Guimarães Rosa: “professor é aquele que de repente aprende”.
[25] O bom exemplo do professor perguntador acompanha uma metodologia da pergunta. Deve-se
estimular o aluno a expressar dúvidas reais, tanto oralmente quanto por escrito. Depois, deve-se mostrar
como lhe ajuda usar perguntas para estudar – por exemplo, pedindo, como trabalho a ser avaliado, dez
perguntas autênticas sobre o livro que estiver sendo lido. Apenas a discussão das perguntas formuladas
pelos alunos já oferece a oportunidade para aulas ótimas.
[30] Veja o leitor como terminei o primeiro e como comecei o quinto parágrafos deste texto: com perguntas.
Elas não só me ajudam a desenvolver meu raciocínio como também ajudam o leitor a acompanhá-lo.
Entretanto, meu leitor, sempre crítico, pode dizer que minhas perguntas se confundem com perguntas
retóricas. Ora, caro leitor, você pensa isso porque ainda guarda na cabeça a ideia de que um texto se
encontra inteiro dentro da cabeça antes de ser escrito, o que não é verdade. O pensamento se forma à
[35] medida que é formado, isto é, à medida que o expressamos.
Lembremos aqui o aforisma completo do filósofo do século XVII René Descartes: dubito ergo sum, vel
quod item est, cogito ergo sum. Ou, em bom português: “duvido logo existo, ou, o que é o mesmo, penso
logo existo”. Para pensar é preciso duvidar; para pensar é preciso fazer boas perguntas.
GUSTAVO BERNARDO Adaptado de Conversas com um professor de literatura. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
Perguntar é preciso? (título)
A partir da perspectiva do autor sobre diferentes tipos de questões, a indagação presente no título atende à seguinte estratégia de argumentação: