Leia a crônica “Eloquência singular”, do escritor Fernando Sabino (1923-2004), para responder às questões de 02 a 05.
Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:
— Senhor Presidente: eu não sou daqueles que…
O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo
indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o
[05] singular:
— Não sou daqueles que…
Não sou daqueles que recusam… No plural soava
melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas arma-
dilhas da linguagem — que recusa? — ele que tão facil-
[10] mente caía nelas, e era logo massacrado com um aparte.
Não sou daqueles que… Resolveu ganhar tempo:
— …embora perfeitamente cônscio das minhas al-
tas responsabilidades como representante do povo nesta
Casa, não sou…
[15] Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que
podia ter pensado em plural? Era um desses casos que
os gramáticos registram nas suas questiúnculas de por-
tuguês: ia para o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de
linguagem, devia ser.
[20] — …daqueles que, em momentos de extrema gravi-
dade, como este que o Brasil atravessa…
Safara-se porque nem se lembrava do verbo que
pretendia usar:
— Não sou daqueles que…
[25] Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que
atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gra-
matical em que sua oratória lamentavelmente se havia
metido logo de saída. Mas a concordância? Qualquer
verbo servia, desde que conjugado corretamente, no sin-
[30] gular. Ou no plural:
— Não sou daqueles que, dizia eu — e é bom que
se repita sempre, senhor Presidente, para que possamos
ser dignos da confiança em nós depositada…
Intercalava orações e mais orações, voltando sempre
[35] ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou
aquela concordância.
[...]
A concordância que fosse para o diabo. Intercalou
mais uma oração e foi em frente com bravura, disposto a
[40] tudo, afirmando não ser daqueles que…
— Como?
Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:
— Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.
Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.
[45] — Vossa Excelência, por obséquio, queira falar mais
alto, que não ouvi bem — e apontava, agoniado, um dos
deputados mais próximos.
— Eu? Mas eu não disse nada…
— Terei o maior prazer em responder ao aparte do
[50] nobre colega. Qualquer aparte.
O silêncio continuava. Interessados, os demais de-
putados se agrupavam em torno do orador, aguardando
o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no
verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde.
[55] — Que é que você acha? – cochichou um.
— Acho que vai para o singular.
— Pois eu não: para o plural, é lógico.
O orador seguia na sua luta:
— Como afirmava no começo de meu discurso, se-
[60] nhor Presidente…
Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa.
Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao pró-
prio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim,
como é que é, me tira desta…
[65] — Quero comunicar ao nobre orador que o seu tem-
po se acha esgotado.
— Apenas algumas palavras, senhor Presidente,
para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero
deixar bem claro que, a esta altura de minha existência,
[70] depois de mais de vinte anos de vida pública…
E entrava por novos desvios:
— Muito embora… sabendo perfeitamente… os im-
perativos de minha consciência cívica… senhor Presi-
dente… e o declaro peremptoriamente… não sou daque-
[75] les que…
O Presidente voltou a adverti-lo de que seu tempo se
esgotara. Não havia mais por onde fugir:
— Senhor Presidente, meus nobres colegas!
Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o
[80] peito e desfechou:
— Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.
Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as
palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi
vivamente cumprimentado.
(A companheira de viagem, 1972.)
O chamado discurso indireto livre constitui uma construção em que a voz da personagem se mescla à voz do narrador.
Verifica-se a ocorrência de discurso indireto livre em: