Texto 01
Entre o ideal e a realidade
Miguel de Cervantes Saavedra tentou a vida como soldado. Foi ferido na batalha de Lepanto e feito cativo em Argel. Nunca encontrou o reconhecimento que esperava da Espanha, mas dessa desilusão nasceu o seu personagem imortal: Dom Quixote.
[1] [...] Numa leitura superficial, Dom Quixote é só a narrativa das aventuras tragicômicas de um
cinquentão remediado chamado Alonso Quixano, fidalgo de baixa extração. O juízo de Quixano, informa o
narrador logo de saída, foi avariado pela leitura dos romances de cavalaria que tinham sido populares no fim
da Idade Média, com seus heróis inverossímeis que dedicavam a vida a corrigir as injustiças do mundo –
[5] uma versão de época dos super-heróis contemporâneos. Como Bruce Wayne virando Batman em sua
caverna, o alucinado Quixano se transforma em Dom Quixote pela força da imaginação e de alguns
adereços improvisados. Acompanhado de um escudeiro realista, sai em incursões pela região da Mancha, no
coração da Espanha, atrás de oportunidades para realizar seu destino heroico e impressionar sua amada
Dulcineia del Toboso, que não é mais real do que o resto. O homem confunde tudo, acredita que moinhos de
[10] vento sejam gigantes ardilosos disfarçados de moinhos de vento, toma prostitutas por nobres donzelas e
frades vestidos de negro por feiticeiros diabólicos. A paisagem prosaica, mundana e dura da Espanha de
princípios do século XVIII transfigura-se aos seus olhos delirantes. Sancho Pança, o escudeiro que só pensa
em comer e beber enquanto sonha com o governo da ilha que seu mestre lhe prometeu como recompensa
por seus serviços, é leal, mas cético. Com os pés no chão, ajuda o leitor a rir do demente. Como não rir? No
[15] entanto...
A história logo se complica – e se faz revolucionária – em conteúdo e em forma. No primeiro caso,
os personagens principais, inicialmente encarnações chapadas da dualidade entre ideal e real, transcendência
e pragmatismo, poesia e prosa, não demoram a ganhar contornos e sombras demasiado humanas. A certa
altura já não parece tão louco imaginar que o “louco” Quixote sabe bem o que faz, usando a falta de juízo
[20] como álibi para a afirmação de uma vontade radicalmente livre que não se curva ao Império, à Igreja nem a
poder algum. E Sancho, a princípio porta-voz de um bom-senso camponês, torna-se cada vez mais sábio e
complexo sob a influência do amo. No segundo volume, quando uma duquesa quer obrigá-lo a reconhecer a
loucura do cavaleiro a quem serve, faz em vez disso uma tocante declaração de amor ao sujeito. E no
capítulo final, aquele em que Quixano, derrotado e renegando sua condição de Dom Quixote, recolhe-se
[25] para morrer, o amigo tenta convencê-lo a retomar a fantasia em tom duro: “Cale-se, por Deus, volte a si e
deixe de histórias”. Mas Quixano deve voltar a si ou voltar para fora de si? Deve deixar de histórias ou, ao
contrário, mergulhar nelas? A humanidade contraditória dos dois amigos – como a dos personagens
secundários, inclusive os mais incidentais, quase todos dotados de voz própria por um narrador que
modernamente se abstém de julgamentos moralistas e abraça as ambiguidades – vai se consolidando à
[30] medida que a trama se adensa [...].
Fonte: RODRIGUES, Sérgio. Entre o ideal e a realidade. Revista Veja, 27 de abril de 2016, p. 94-97. Adaptado.
Pelo que nos relata o jornalista, uma influência decisiva para que Alonso Quixano se transformasse em Dom Quixote foi
Texto 01
Entre o ideal e a realidade
Miguel de Cervantes Saavedra tentou a vida como soldado. Foi ferido na batalha de Lepanto e feito cativo em Argel. Nunca encontrou o reconhecimento que esperava da Espanha, mas dessa desilusão nasceu o seu personagem imortal: Dom Quixote.
[1] [...] Numa leitura superficial, Dom Quixote é só a narrativa das aventuras tragicômicas de um
cinquentão remediado chamado Alonso Quixano, fidalgo de baixa extração. O juízo de Quixano, informa o
narrador logo de saída, foi avariado pela leitura dos romances de cavalaria que tinham sido populares no fim
da Idade Média, com seus heróis inverossímeis que dedicavam a vida a corrigir as injustiças do mundo –
[5] uma versão de época dos super-heróis contemporâneos. Como Bruce Wayne virando Batman em sua
caverna, o alucinado Quixano se transforma em Dom Quixote pela força da imaginação e de alguns
adereços improvisados. Acompanhado de um escudeiro realista, sai em incursões pela região da Mancha, no
coração da Espanha, atrás de oportunidades para realizar seu destino heroico e impressionar sua amada
Dulcineia del Toboso, que não é mais real do que o resto. O homem confunde tudo, acredita que moinhos de
[10] vento sejam gigantes ardilosos disfarçados de moinhos de vento, toma prostitutas por nobres donzelas e
frades vestidos de negro por feiticeiros diabólicos. A paisagem prosaica, mundana e dura da Espanha de
princípios do século XVIII transfigura-se aos seus olhos delirantes. Sancho Pança, o escudeiro que só pensa
em comer e beber enquanto sonha com o governo da ilha que seu mestre lhe prometeu como recompensa
por seus serviços, é leal, mas cético. Com os pés no chão, ajuda o leitor a rir do demente. Como não rir? No
[15] entanto...
A história logo se complica – e se faz revolucionária – em conteúdo e em forma. No primeiro caso,
os personagens principais, inicialmente encarnações chapadas da dualidade entre ideal e real, transcendência
e pragmatismo, poesia e prosa, não demoram a ganhar contornos e sombras demasiado humanas. A certa
altura já não parece tão louco imaginar que o “louco” Quixote sabe bem o que faz, usando a falta de juízo
[20] como álibi para a afirmação de uma vontade radicalmente livre que não se curva ao Império, à Igreja nem a
poder algum. E Sancho, a princípio porta-voz de um bom-senso camponês, torna-se cada vez mais sábio e
complexo sob a influência do amo. No segundo volume, quando uma duquesa quer obrigá-lo a reconhecer a
loucura do cavaleiro a quem serve, faz em vez disso uma tocante declaração de amor ao sujeito. E no
capítulo final, aquele em que Quixano, derrotado e renegando sua condição de Dom Quixote, recolhe-se
[25] para morrer, o amigo tenta convencê-lo a retomar a fantasia em tom duro: “Cale-se, por Deus, volte a si e
deixe de histórias”. Mas Quixano deve voltar a si ou voltar para fora de si? Deve deixar de histórias ou, ao
contrário, mergulhar nelas? A humanidade contraditória dos dois amigos – como a dos personagens
secundários, inclusive os mais incidentais, quase todos dotados de voz própria por um narrador que
modernamente se abstém de julgamentos moralistas e abraça as ambiguidades – vai se consolidando à
[30] medida que a trama se adensa [...].
Fonte: RODRIGUES, Sérgio. Entre o ideal e a realidade. Revista Veja, 27 de abril de 2016, p. 94-97. Adaptado.
Na composição de seu texto, o locutor utiliza-se do gênero textual artigo jornalístico. Nesse artigo, podemos constatar as seguintes características, EXCETO
Texto 01
Entre o ideal e a realidade
Miguel de Cervantes Saavedra tentou a vida como soldado. Foi ferido na batalha de Lepanto e feito cativo em Argel. Nunca encontrou o reconhecimento que esperava da Espanha, mas dessa desilusão nasceu o seu personagem imortal: Dom Quixote.
[1] [...] Numa leitura superficial, Dom Quixote é só a narrativa das aventuras tragicômicas de um
cinquentão remediado chamado Alonso Quixano, fidalgo de baixa extração. O juízo de Quixano, informa o
narrador logo de saída, foi avariado pela leitura dos romances de cavalaria que tinham sido populares no fim
da Idade Média, com seus heróis inverossímeis que dedicavam a vida a corrigir as injustiças do mundo –
[5] uma versão de época dos super-heróis contemporâneos. Como Bruce Wayne virando Batman em sua
caverna, o alucinado Quixano se transforma em Dom Quixote pela força da imaginação e de alguns
adereços improvisados. Acompanhado de um escudeiro realista, sai em incursões pela região da Mancha, no
coração da Espanha, atrás de oportunidades para realizar seu destino heroico e impressionar sua amada
Dulcineia del Toboso, que não é mais real do que o resto. O homem confunde tudo, acredita que moinhos de
[10] vento sejam gigantes ardilosos disfarçados de moinhos de vento, toma prostitutas por nobres donzelas e
frades vestidos de negro por feiticeiros diabólicos. A paisagem prosaica, mundana e dura da Espanha de
princípios do século XVIII transfigura-se aos seus olhos delirantes. Sancho Pança, o escudeiro que só pensa
em comer e beber enquanto sonha com o governo da ilha que seu mestre lhe prometeu como recompensa
por seus serviços, é leal, mas cético. Com os pés no chão, ajuda o leitor a rir do demente. Como não rir? No
[15] entanto...
A história logo se complica – e se faz revolucionária – em conteúdo e em forma. No primeiro caso,
os personagens principais, inicialmente encarnações chapadas da dualidade entre ideal e real, transcendência
e pragmatismo, poesia e prosa, não demoram a ganhar contornos e sombras demasiado humanas. A certa
altura já não parece tão louco imaginar que o “louco” Quixote sabe bem o que faz, usando a falta de juízo
[20] como álibi para a afirmação de uma vontade radicalmente livre que não se curva ao Império, à Igreja nem a
poder algum. E Sancho, a princípio porta-voz de um bom-senso camponês, torna-se cada vez mais sábio e
complexo sob a influência do amo. No segundo volume, quando uma duquesa quer obrigá-lo a reconhecer a
loucura do cavaleiro a quem serve, faz em vez disso uma tocante declaração de amor ao sujeito. E no
capítulo final, aquele em que Quixano, derrotado e renegando sua condição de Dom Quixote, recolhe-se
[25] para morrer, o amigo tenta convencê-lo a retomar a fantasia em tom duro: “Cale-se, por Deus, volte a si e
deixe de histórias”. Mas Quixano deve voltar a si ou voltar para fora de si? Deve deixar de histórias ou, ao
contrário, mergulhar nelas? A humanidade contraditória dos dois amigos – como a dos personagens
secundários, inclusive os mais incidentais, quase todos dotados de voz própria por um narrador que
modernamente se abstém de julgamentos moralistas e abraça as ambiguidades – vai se consolidando à
[30] medida que a trama se adensa [...].
Fonte: RODRIGUES, Sérgio. Entre o ideal e a realidade. Revista Veja, 27 de abril de 2016, p. 94-97. Adaptado.
Dom Quixote, personagem de Miguel de Cervantes, é comparado a heróis modernos pelo(s)/pela
Texto 01
Entre o ideal e a realidade
Miguel de Cervantes Saavedra tentou a vida como soldado. Foi ferido na batalha de Lepanto e feito cativo em Argel. Nunca encontrou o reconhecimento que esperava da Espanha, mas dessa desilusão nasceu o seu personagem imortal: Dom Quixote.
[1] [...] Numa leitura superficial, Dom Quixote é só a narrativa das aventuras tragicômicas de um
cinquentão remediado chamado Alonso Quixano, fidalgo de baixa extração. O juízo de Quixano, informa o
narrador logo de saída, foi avariado pela leitura dos romances de cavalaria que tinham sido populares no fim
da Idade Média, com seus heróis inverossímeis que dedicavam a vida a corrigir as injustiças do mundo –
[5] uma versão de época dos super-heróis contemporâneos. Como Bruce Wayne virando Batman em sua
caverna, o alucinado Quixano se transforma em Dom Quixote pela força da imaginação e de alguns
adereços improvisados. Acompanhado de um escudeiro realista, sai em incursões pela região da Mancha, no
coração da Espanha, atrás de oportunidades para realizar seu destino heroico e impressionar sua amada
Dulcineia del Toboso, que não é mais real do que o resto. O homem confunde tudo, acredita que moinhos de
[10] vento sejam gigantes ardilosos disfarçados de moinhos de vento, toma prostitutas por nobres donzelas e
frades vestidos de negro por feiticeiros diabólicos. A paisagem prosaica, mundana e dura da Espanha de
princípios do século XVIII transfigura-se aos seus olhos delirantes. Sancho Pança, o escudeiro que só pensa
em comer e beber enquanto sonha com o governo da ilha que seu mestre lhe prometeu como recompensa
por seus serviços, é leal, mas cético. Com os pés no chão, ajuda o leitor a rir do demente. Como não rir? No
[15] entanto...
A história logo se complica – e se faz revolucionária – em conteúdo e em forma. No primeiro caso,
os personagens principais, inicialmente encarnações chapadas da dualidade entre ideal e real, transcendência
e pragmatismo, poesia e prosa, não demoram a ganhar contornos e sombras demasiado humanas. A certa
altura já não parece tão louco imaginar que o “louco” Quixote sabe bem o que faz, usando a falta de juízo
[20] como álibi para a afirmação de uma vontade radicalmente livre que não se curva ao Império, à Igreja nem a
poder algum. E Sancho, a princípio porta-voz de um bom-senso camponês, torna-se cada vez mais sábio e
complexo sob a influência do amo. No segundo volume, quando uma duquesa quer obrigá-lo a reconhecer a
loucura do cavaleiro a quem serve, faz em vez disso uma tocante declaração de amor ao sujeito. E no
capítulo final, aquele em que Quixano, derrotado e renegando sua condição de Dom Quixote, recolhe-se
[25] para morrer, o amigo tenta convencê-lo a retomar a fantasia em tom duro: “Cale-se, por Deus, volte a si e
deixe de histórias”. Mas Quixano deve voltar a si ou voltar para fora de si? Deve deixar de histórias ou, ao
contrário, mergulhar nelas? A humanidade contraditória dos dois amigos – como a dos personagens
secundários, inclusive os mais incidentais, quase todos dotados de voz própria por um narrador que
modernamente se abstém de julgamentos moralistas e abraça as ambiguidades – vai se consolidando à
[30] medida que a trama se adensa [...].
Fonte: RODRIGUES, Sérgio. Entre o ideal e a realidade. Revista Veja, 27 de abril de 2016, p. 94-97. Adaptado.
Sancho Pança, o companheiro de Dom Quixote em suas aventuras,
Texto 01
Entre o ideal e a realidade
Miguel de Cervantes Saavedra tentou a vida como soldado. Foi ferido na batalha de Lepanto e feito cativo em Argel. Nunca encontrou o reconhecimento que esperava da Espanha, mas dessa desilusão nasceu o seu personagem imortal: Dom Quixote.
[1] [...] Numa leitura superficial, Dom Quixote é só a narrativa das aventuras tragicômicas de um
cinquentão remediado chamado Alonso Quixano, fidalgo de baixa extração. O juízo de Quixano, informa o
narrador logo de saída, foi avariado pela leitura dos romances de cavalaria que tinham sido populares no fim
da Idade Média, com seus heróis inverossímeis que dedicavam a vida a corrigir as injustiças do mundo –
[5] uma versão de época dos super-heróis contemporâneos. Como Bruce Wayne virando Batman em sua
caverna, o alucinado Quixano se transforma em Dom Quixote pela força da imaginação e de alguns
adereços improvisados. Acompanhado de um escudeiro realista, sai em incursões pela região da Mancha, no
coração da Espanha, atrás de oportunidades para realizar seu destino heroico e impressionar sua amada
Dulcineia del Toboso, que não é mais real do que o resto. O homem confunde tudo, acredita que moinhos de
[10] vento sejam gigantes ardilosos disfarçados de moinhos de vento, toma prostitutas por nobres donzelas e
frades vestidos de negro por feiticeiros diabólicos. A paisagem prosaica, mundana e dura da Espanha de
princípios do século XVIII transfigura-se aos seus olhos delirantes. Sancho Pança, o escudeiro que só pensa
em comer e beber enquanto sonha com o governo da ilha que seu mestre lhe prometeu como recompensa
por seus serviços, é leal, mas cético. Com os pés no chão, ajuda o leitor a rir do demente. Como não rir? No
[15] entanto...
A história logo se complica – e se faz revolucionária – em conteúdo e em forma. No primeiro caso,
os personagens principais, inicialmente encarnações chapadas da dualidade entre ideal e real, transcendência
e pragmatismo, poesia e prosa, não demoram a ganhar contornos e sombras demasiado humanas. A certa
altura já não parece tão louco imaginar que o “louco” Quixote sabe bem o que faz, usando a falta de juízo
[20] como álibi para a afirmação de uma vontade radicalmente livre que não se curva ao Império, à Igreja nem a
poder algum. E Sancho, a princípio porta-voz de um bom-senso camponês, torna-se cada vez mais sábio e
complexo sob a influência do amo. No segundo volume, quando uma duquesa quer obrigá-lo a reconhecer a
loucura do cavaleiro a quem serve, faz em vez disso uma tocante declaração de amor ao sujeito. E no
capítulo final, aquele em que Quixano, derrotado e renegando sua condição de Dom Quixote, recolhe-se
[25] para morrer, o amigo tenta convencê-lo a retomar a fantasia em tom duro: “Cale-se, por Deus, volte a si e
deixe de histórias”. Mas Quixano deve voltar a si ou voltar para fora de si? Deve deixar de histórias ou, ao
contrário, mergulhar nelas? A humanidade contraditória dos dois amigos – como a dos personagens
secundários, inclusive os mais incidentais, quase todos dotados de voz própria por um narrador que
modernamente se abstém de julgamentos moralistas e abraça as ambiguidades – vai se consolidando à
[30] medida que a trama se adensa [...].
Fonte: RODRIGUES, Sérgio. Entre o ideal e a realidade. Revista Veja, 27 de abril de 2016, p. 94-97. Adaptado.
Leia este trecho do artigo:
“A certa altura, já não parece tão louco imaginar que o ‘louco’ Quixote sabe bem o que faz, usando a falta de juízo como álibi para a afirmação de uma vontade radicalmente livre que não se curva [...] a poder algum.” (Linhas 18-21)
Está implícita, nesse trecho, uma postura de Dom Quixote que permite revelá-lo como um espírito
Texto 01
Entre o ideal e a realidade
Miguel de Cervantes Saavedra tentou a vida como soldado. Foi ferido na batalha de Lepanto e feito cativo em Argel. Nunca encontrou o reconhecimento que esperava da Espanha, mas dessa desilusão nasceu o seu personagem imortal: Dom Quixote.
[1] [...] Numa leitura superficial, Dom Quixote é só a narrativa das aventuras tragicômicas de um
cinquentão remediado chamado Alonso Quixano, fidalgo de baixa extração. O juízo de Quixano, informa o
narrador logo de saída, foi avariado pela leitura dos romances de cavalaria que tinham sido populares no fim
da Idade Média, com seus heróis inverossímeis que dedicavam a vida a corrigir as injustiças do mundo –
[5] uma versão de época dos super-heróis contemporâneos. Como Bruce Wayne virando Batman em sua
caverna, o alucinado Quixano se transforma em Dom Quixote pela força da imaginação e de alguns
adereços improvisados. Acompanhado de um escudeiro realista, sai em incursões pela região da Mancha, no
coração da Espanha, atrás de oportunidades para realizar seu destino heroico e impressionar sua amada
Dulcineia del Toboso, que não é mais real do que o resto. O homem confunde tudo, acredita que moinhos de
[10] vento sejam gigantes ardilosos disfarçados de moinhos de vento, toma prostitutas por nobres donzelas e
frades vestidos de negro por feiticeiros diabólicos. A paisagem prosaica, mundana e dura da Espanha de
princípios do século XVIII transfigura-se aos seus olhos delirantes. Sancho Pança, o escudeiro que só pensa
em comer e beber enquanto sonha com o governo da ilha que seu mestre lhe prometeu como recompensa
por seus serviços, é leal, mas cético. Com os pés no chão, ajuda o leitor a rir do demente. Como não rir? No
[15] entanto...
A história logo se complica – e se faz revolucionária – em conteúdo e em forma. No primeiro caso,
os personagens principais, inicialmente encarnações chapadas da dualidade entre ideal e real, transcendência
e pragmatismo, poesia e prosa, não demoram a ganhar contornos e sombras demasiado humanas. A certa
altura já não parece tão louco imaginar que o “louco” Quixote sabe bem o que faz, usando a falta de juízo
[20] como álibi para a afirmação de uma vontade radicalmente livre que não se curva ao Império, à Igreja nem a
poder algum. E Sancho, a princípio porta-voz de um bom-senso camponês, torna-se cada vez mais sábio e
complexo sob a influência do amo. No segundo volume, quando uma duquesa quer obrigá-lo a reconhecer a
loucura do cavaleiro a quem serve, faz em vez disso uma tocante declaração de amor ao sujeito. E no
capítulo final, aquele em que Quixano, derrotado e renegando sua condição de Dom Quixote, recolhe-se
[25] para morrer, o amigo tenta convencê-lo a retomar a fantasia em tom duro: “Cale-se, por Deus, volte a si e
deixe de histórias”. Mas Quixano deve voltar a si ou voltar para fora de si? Deve deixar de histórias ou, ao
contrário, mergulhar nelas? A humanidade contraditória dos dois amigos – como a dos personagens
secundários, inclusive os mais incidentais, quase todos dotados de voz própria por um narrador que
modernamente se abstém de julgamentos moralistas e abraça as ambiguidades – vai se consolidando à
[30] medida que a trama se adensa [...].
Fonte: RODRIGUES, Sérgio. Entre o ideal e a realidade. Revista Veja, 27 de abril de 2016, p. 94-97. Adaptado.
Nesse texto, embora haja marcas de linguagem coloquial,