Chove no sertão e não tem nada mais bonito
É preciso lembrar dos milhares de “anjinhos” e das vidas secas antes dos programais sociais no Nordeste.
XICO SÁ
24 FEV 2018
Desculpem, amigos, mas quando chove
bem no Cariri e arredores não conseguimos fa-
lar de outro assunto. Coisa de caririense, coisa
de cearense, coisa do interior nordestino. […]
[5] Depois de sete anos de vidassecas, o aguaceiro,
comdireito à imagemmais bonita da existência:
alguns açudes sangrando.
Nada mais lindo que um açude sangrando,
comentou o camarada potiguar Carlão de
[10] Souza esta semana. Não cabe na vista. A
mesma sangria, sem nada combinado, foi as-
sunto de outro irmão rochedo, Paulo Mota, das
bandas de Sucesso, área cearense de Tamboril,
pense na geografia, pense! Não há como não se
[15] arrupiar todinho diante de tal fenômeno. Levo
essa ideia da chuva para onde for, só a chuva
nos importa, mesmo quando estamos nos sítios
mais chuvosos do universo. A chuva é meu gol,
minha Copa do Mundo, Deus gozando a glória,
[20] meu amor.
Mesmo depois de quatro décadas mo-
rando longe da nação semiárida, o tema chu-
voso encobre qualquer outra história. Nunca
perdemos a mania. Mesmo antes de qualquer
[25] preâmbulo carinhoso do telefonema, sai
inevitavelmente a naturalíssima pergunta: “Tá
chovendo?” E como ficamos revoltados
quando os moços e moças da meteorologia da
tevê dizem “tempo bom” no Nordeste para in-
[30] dicar que será mais um dia de estiagem.
Tempo bom uma ova. Sorte que pelo menos a
Maju, no JN, tem o cuidado de não cometer
essa indelicadeza, ela mudou essa história,
juro. Sempre lembro do meu avô Manuel No-
[35] vais, pernambucaníssimo em modos e blas-
fêmias, brigando com os locutores do rádio e
da televisão: “Tempo bom para quem, filho de
uma égua!” Daí saía um rosário de palavrões:
febre-do-rato, istampô-calango, besta fubana,
[40] peste bubônica etc.
Quem disse que os meus parentes mais
velhos da Baixada Fluminense, mesmo sob o
bafo no cangote da Intervenção Militar no
Rio, comentaram outra pauta. Só a chuva em
[45] Bodocó (PE) e na encosta na chapada do
Araripe interessa. Em SP, o mesmo coro dos
contentes: do Parque São Rafael, na ZL, a Pi-
rituba, no noroeste paulistano, onde Aristides
Moreno, quase 90 de vida, meu herói de in-
[50] fância, o homem que vi enfrentar secas bra-
bas, coivaras, brocas e escavações de poços
profundos que atingiam o Japão e quase não
chegavam em um veio d´água. Minha tia-avó
Rudá, em São Miguel Paulista,símbolo de re-
[55] sistência sob o sol de Raquel e Graciliano,
que o diga. Esse mar de histórias me chega
pelo amigo Francisco de Assis, meu Homero
das narrações dos “sertanejos do Norte”, das
gentes “lá de nós”, pois.
[60] E tem um livro bonito, rapaz, que mostra
esse nosso alumbramento com a chuva, um
livro de fotos de Fred Jordão, chama Sertão
Verde-paisagens. […]. Desculpem, leitores, o
país sob nuvens de chumbo, um resquício au-
[65] toritário da moléstia dos cachorros, e este cro-
nista, qual o cantor Demetrius, no ritmo da
chuva. É mais forte, colegas, os olhos do ma-
tuto faíscam, a memória rebobina relâmpagos
e promessas de promissores horizontes que, na
[70] maioria das vezes, deram em nada. Quantas
retinas gastas com estes clarões. Sabe lá o que
é isso? […]
Depois de uns sete anos de seca braba na
maior parte do semiárido, que vive processo
[75] de desertificação, a chuva é festa. Tamanha
estiagem, antes de programas como o Bolsa
Família, provocava convulsões sociais e as
notícias de saques eram diárias. Testemunhei
centenas de invasões de hordas de famintos
[80] em feiras livres e armazéns de cereais no Crato
e Nova Olinda. No cemitério de Aratama, dis-
trito de Assaré (CE), via e revia a chegada de
centenas de “anjinhos”, como eram chamados
os recém-nascidos e crianças mortas pela des-
[85] nutrição. Aqueles pequenos caixões azuis
fornecidos por caridade da Igreja Católica
mancham a vista até hoje. “Deus que levou”,
diziam as mães, resignadas, Deussabe como!
Logo mais narrarei toda essa memória pra
[90] Irene, minha filha de um ano, que já viu tem-
pestade desta safra no colo dos avós “lá em
nós”. E não é que a mãe Larissa, um dia antes
de saber o tema dessa crônica, leu para a da-
nada “Ombela, a origem da chuvas” (editora
[95] Pallas Mini, 2014), do irmão angolano
Ondjaki?! Assimele começa o livro e assim eu
acabo esta crônica molhadinha: “Dizem os
mais velhos que a chuva nasceu da lágrima de
Ombela, uma deusa que estava triste”.
(Fonte:Jornal El País - https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/24/opinion/1519484958_938753.html (Adaptado)).
Marque a alternativa em que o uso do “que” é idêntico ao do trecho destacado: “Sorte que pelo menos a Maju, no JN, tem o cuidado de não cometer essa indelicadeza, ela mudou essa história, juro ( ℓ.31 a 34) ”.