Zé Linguiça
Pode até não ser uma verdade comprovada pela história, mas ninguém discute que se trata de uma
belíssima ideia. Na Roma antiga, quando um grande general voltava de uma campanha vitoriosa no
estrangeiro, fazia-se uma fabulosa procissão triunfal pelas ruas da cidade, o “triunfo”, para exibir diante do
mundo a glória do comandante vencedor, e homenagear a grandeza que ele trazia à pátria. Era a honra
máxima que um cidadão romano podia obter, e dava um trabalho danado chegar lá. Ele tinha de ter matado em
combate pelo menos 5000 soldados inimigos. Tinha de mostrar, presos, os chefes derrotados. Tinha de ter
enfrentado um exército pelo menos equivalente ao seu. Tinha, sobretudo, de trazer sua tropa de volta para
casa. O problema, nisso tudo, é que os romanos da Antiguidade eram gente que tinha em altíssima conta a
modéstia pessoal – e, em consequência, fechava a cara para qualquer demonstração de soberba. O que fazer,
então, na hora em que o general vitorioso desfilava perante a multidão como se fosse um rei? É aí que aparece
a ideia mencionada acima. Logo atrás do “triunfador”, no mesmo carro puxado por quatro cavalos que ele
conduzia, ficava um escravo que, de tanto em tanto tempo, lhe dizia baixinho ao ouvido: “Memento mori”. Ou:
“Lembre-se de que você vai morrer um dia”. Nada melhor, provavelmente, para baixar o facho de qualquer alta
autoridade que começa a se achar.
Esse procedimento poderia ser o tipo da coisa útil no governo brasileiro de hoje. Seria uma beleza, por
exemplo, se o chanceler Antonio Patriota, ao desfilar pelo planeta com a sua bela pasta de couro, distribuindo
em nome da presidente Dilma Rousseff as advertências do Brasil para os grandes, médios e pequenos deste
mundo, tivesse algum recurso parecido – naturalmente, com as adaptações necessárias às nossas realidades
atuais. Um oficial de chancelaria, digamos, andaria sempre atrás dele; só que, em vez do severo aviso romano,
ficaria repetindo ao seu ouvido: “Lembre-se do Zé Linguiça”. Deveria ser o suficiente para o dr. Patriota cair
bem depressa na real. Ele se lembraria imediatamente de que vem do país do Zé Linguiça – e ninguém, nem a
presidente Dilma, consegue transformar em potência mundial um país que chega a ter no centro do maior
espetáculo jurídico da sua história, mesmo por um momento fugaz, um cidadão chamado Zé Linguiça. Quem
acompanha o julgamento do mensalão pode estar lembrado desse Zé Linguiça – o elo perdido entre um dos
réus e a mala preta do professor Delúbio Soares, o tesoureiro do PT. Mas falar dele justo nesta hora, na
suprema corte da nossa terra, em seus dias de solenidade máxima? Bem no momento em que cada ministro
quer ser, no mínimo, um Cícero, e outros são capazes de escrever mais de 1000 páginas para dizer se um
cidadão é culpado ou inocente? Pois é – aí vem o Zé Linguiça, e com um personagem desses não há pose que
resista. Some, na hora, o Brasil Grande. Aparece o Brasil de verdade.
Falou-se do ministro Patriota, mas o aviso ao pé do ouvido vale para qualquer grão-duque do poder
público brasileiro, e para a própria presidente da República, quando começam a imaginar que são o rei Luís XV
de França. Quanto à mensagem dos lembretes, então, há uma infinidade de coisas a dizer além do Zé
Linguiça. A voz poderia lhes recordar, por exemplo: “Todo ano há 50000 homicídios no Brasil”. Em três anos,
com 150000 cadáveres, é o equivalente a uma bomba de Hiroshima. Ou: “O ensino médio brasileiro, pelos
dados oficiais de 2011, tem nota 3,7, numa escala que vai de 0 a 10”. Seria possível lembrar que as dez
entradas de São Paulo, a cidade mais rica e possante do Brasil, formam uma das mais pavorosas sucessões
de favelas de todo o mundo; nosso desenvolvimento, em qualquer lugar do país, tem o dom de atrair miséria.
Também seria útil que nossas autoridades, em seus acessos de grandeza, lembrassem que a população
brasileira está proibida de frequentar áreas inteiras das grandes cidades, tomadas por bandidos, vadios e
predadores diversos, como se vivesse sob o toque de recolher imposto por um exército de ocupação. Como
essa gente que está no governo pode dormir em paz num país assim?
Esse pesadelo não foi criado pelo governo da presidente Dilma, nem será resolvido por ela. Mas então,
como o rei da Espanha recomendou tempos atrás ao coronel Hugo Chávez, por que não se calam? Por que se
metem na vida do Paraguai ou dão palpites na economia da Europa? Por uma questão de decência comum, e
em nome do senso de ridículo, todos deveriam fazer, já, um voto de silêncio.
Revista Veja, 29 de agosto de 2012.
O trecho em que o autor, ao relatar fatos, expressa sua opinião valendo-se de uma expressão coloquial é
Zé Linguiça
Pode até não ser uma verdade comprovada pela história, mas ninguém discute que se trata de uma
belíssima ideia. Na Roma antiga, quando um grande general voltava de uma campanha vitoriosa no
estrangeiro, fazia-se uma fabulosa procissão triunfal pelas ruas da cidade, o “triunfo”, para exibir diante do
mundo a glória do comandante vencedor, e homenagear a grandeza que ele trazia à pátria. Era a honra
máxima que um cidadão romano podia obter, e dava um trabalho danado chegar lá. Ele tinha de ter matado em
combate pelo menos 5000 soldados inimigos. Tinha de mostrar, presos, os chefes derrotados. Tinha de ter
enfrentado um exército pelo menos equivalente ao seu. Tinha, sobretudo, de trazer sua tropa de volta para
casa. O problema, nisso tudo, é que os romanos da Antiguidade eram gente que tinha em altíssima conta a
modéstia pessoal – e, em consequência, fechava a cara para qualquer demonstração de soberba. O que fazer,
então, na hora em que o general vitorioso desfilava perante a multidão como se fosse um rei? É aí que aparece
a ideia mencionada acima. Logo atrás do “triunfador”, no mesmo carro puxado por quatro cavalos que ele
conduzia, ficava um escravo que, de tanto em tanto tempo, lhe dizia baixinho ao ouvido: “Memento mori”. Ou:
“Lembre-se de que você vai morrer um dia”. Nada melhor, provavelmente, para baixar o facho de qualquer alta
autoridade que começa a se achar.
Esse procedimento poderia ser o tipo da coisa útil no governo brasileiro de hoje. Seria uma beleza, por
exemplo, se o chanceler Antonio Patriota, ao desfilar pelo planeta com a sua bela pasta de couro, distribuindo
em nome da presidente Dilma Rousseff as advertências do Brasil para os grandes, médios e pequenos deste
mundo, tivesse algum recurso parecido – naturalmente, com as adaptações necessárias às nossas realidades
atuais. Um oficial de chancelaria, digamos, andaria sempre atrás dele; só que, em vez do severo aviso romano,
ficaria repetindo ao seu ouvido: “Lembre-se do Zé Linguiça”. Deveria ser o suficiente para o dr. Patriota cair
bem depressa na real. Ele se lembraria imediatamente de que vem do país do Zé Linguiça – e ninguém, nem a
presidente Dilma, consegue transformar em potência mundial um país que chega a ter no centro do maior
espetáculo jurídico da sua história, mesmo por um momento fugaz, um cidadão chamado Zé Linguiça. Quem
acompanha o julgamento do mensalão pode estar lembrado desse Zé Linguiça – o elo perdido entre um dos
réus e a mala preta do professor Delúbio Soares, o tesoureiro do PT. Mas falar dele justo nesta hora, na
suprema corte da nossa terra, em seus dias de solenidade máxima? Bem no momento em que cada ministro
quer ser, no mínimo, um Cícero, e outros são capazes de escrever mais de 1000 páginas para dizer se um
cidadão é culpado ou inocente? Pois é – aí vem o Zé Linguiça, e com um personagem desses não há pose que
resista. Some, na hora, o Brasil Grande. Aparece o Brasil de verdade.
Falou-se do ministro Patriota, mas o aviso ao pé do ouvido vale para qualquer grão-duque do poder
público brasileiro, e para a própria presidente da República, quando começam a imaginar que são o rei Luís XV
de França. Quanto à mensagem dos lembretes, então, há uma infinidade de coisas a dizer além do Zé
Linguiça. A voz poderia lhes recordar, por exemplo: “Todo ano há 50000 homicídios no Brasil”. Em três anos,
com 150000 cadáveres, é o equivalente a uma bomba de Hiroshima. Ou: “O ensino médio brasileiro, pelos
dados oficiais de 2011, tem nota 3,7, numa escala que vai de 0 a 10”. Seria possível lembrar que as dez
entradas de São Paulo, a cidade mais rica e possante do Brasil, formam uma das mais pavorosas sucessões
de favelas de todo o mundo; nosso desenvolvimento, em qualquer lugar do país, tem o dom de atrair miséria.
Também seria útil que nossas autoridades, em seus acessos de grandeza, lembrassem que a população
brasileira está proibida de frequentar áreas inteiras das grandes cidades, tomadas por bandidos, vadios e
predadores diversos, como se vivesse sob o toque de recolher imposto por um exército de ocupação. Como
essa gente que está no governo pode dormir em paz num país assim?
Esse pesadelo não foi criado pelo governo da presidente Dilma, nem será resolvido por ela. Mas então,
como o rei da Espanha recomendou tempos atrás ao coronel Hugo Chávez, por que não se calam? Por que se
metem na vida do Paraguai ou dão palpites na economia da Europa? Por uma questão de decência comum, e
em nome do senso de ridículo, todos deveriam fazer, já, um voto de silêncio.
Revista Veja, 29 de agosto de 2012.
Sobre o conteúdo do texto, é correto afirmar que o autor critica, particularmente, as autoridades brasileiras por estas serem
Zé Linguiça
Pode até não ser uma verdade comprovada pela história, mas ninguém discute que se trata de uma
belíssima ideia. Na Roma antiga, quando um grande general voltava de uma campanha vitoriosa no
estrangeiro, fazia-se uma fabulosa procissão triunfal pelas ruas da cidade, o “triunfo”, para exibir diante do
mundo a glória do comandante vencedor, e homenagear a grandeza que ele trazia à pátria. Era a honra
máxima que um cidadão romano podia obter, e dava um trabalho danado chegar lá. Ele tinha de ter matado em
combate pelo menos 5000 soldados inimigos. Tinha de mostrar, presos, os chefes derrotados. Tinha de ter
enfrentado um exército pelo menos equivalente ao seu. Tinha, sobretudo, de trazer sua tropa de volta para
casa. O problema, nisso tudo, é que os romanos da Antiguidade eram gente que tinha em altíssima conta a
modéstia pessoal – e, em consequência, fechava a cara para qualquer demonstração de soberba. O que fazer,
então, na hora em que o general vitorioso desfilava perante a multidão como se fosse um rei? É aí que aparece
a ideia mencionada acima. Logo atrás do “triunfador”, no mesmo carro puxado por quatro cavalos que ele
conduzia, ficava um escravo que, de tanto em tanto tempo, lhe dizia baixinho ao ouvido: “Memento mori”. Ou:
“Lembre-se de que você vai morrer um dia”. Nada melhor, provavelmente, para baixar o facho de qualquer alta
autoridade que começa a se achar.
Esse procedimento poderia ser o tipo da coisa útil no governo brasileiro de hoje. Seria uma beleza, por
exemplo, se o chanceler Antonio Patriota, ao desfilar pelo planeta com a sua bela pasta de couro, distribuindo
em nome da presidente Dilma Rousseff as advertências do Brasil para os grandes, médios e pequenos deste
mundo, tivesse algum recurso parecido – naturalmente, com as adaptações necessárias às nossas realidades
atuais. Um oficial de chancelaria, digamos, andaria sempre atrás dele; só que, em vez do severo aviso romano,
ficaria repetindo ao seu ouvido: “Lembre-se do Zé Linguiça”. Deveria ser o suficiente para o dr. Patriota cair
bem depressa na real. Ele se lembraria imediatamente de que vem do país do Zé Linguiça – e ninguém, nem a
presidente Dilma, consegue transformar em potência mundial um país que chega a ter no centro do maior
espetáculo jurídico da sua história, mesmo por um momento fugaz, um cidadão chamado Zé Linguiça. Quem
acompanha o julgamento do mensalão pode estar lembrado desse Zé Linguiça – o elo perdido entre um dos
réus e a mala preta do professor Delúbio Soares, o tesoureiro do PT. Mas falar dele justo nesta hora, na
suprema corte da nossa terra, em seus dias de solenidade máxima? Bem no momento em que cada ministro
quer ser, no mínimo, um Cícero, e outros são capazes de escrever mais de 1000 páginas para dizer se um
cidadão é culpado ou inocente? Pois é – aí vem o Zé Linguiça, e com um personagem desses não há pose que
resista. Some, na hora, o Brasil Grande. Aparece o Brasil de verdade.
Falou-se do ministro Patriota, mas o aviso ao pé do ouvido vale para qualquer grão-duque do poder
público brasileiro, e para a própria presidente da República, quando começam a imaginar que são o rei Luís XV
de França. Quanto à mensagem dos lembretes, então, há uma infinidade de coisas a dizer além do Zé
Linguiça. A voz poderia lhes recordar, por exemplo: “Todo ano há 50000 homicídios no Brasil”. Em três anos,
com 150000 cadáveres, é o equivalente a uma bomba de Hiroshima. Ou: “O ensino médio brasileiro, pelos
dados oficiais de 2011, tem nota 3,7, numa escala que vai de 0 a 10”. Seria possível lembrar que as dez
entradas de São Paulo, a cidade mais rica e possante do Brasil, formam uma das mais pavorosas sucessões
de favelas de todo o mundo; nosso desenvolvimento, em qualquer lugar do país, tem o dom de atrair miséria.
Também seria útil que nossas autoridades, em seus acessos de grandeza, lembrassem que a população
brasileira está proibida de frequentar áreas inteiras das grandes cidades, tomadas por bandidos, vadios e
predadores diversos, como se vivesse sob o toque de recolher imposto por um exército de ocupação. Como
essa gente que está no governo pode dormir em paz num país assim?
Esse pesadelo não foi criado pelo governo da presidente Dilma, nem será resolvido por ela. Mas então,
como o rei da Espanha recomendou tempos atrás ao coronel Hugo Chávez, por que não se calam? Por que se
metem na vida do Paraguai ou dão palpites na economia da Europa? Por uma questão de decência comum, e
em nome do senso de ridículo, todos deveriam fazer, já, um voto de silêncio.
Revista Veja, 29 de agosto de 2012.
Sobre o trecho “Mas falar dele justo nesta hora, na suprema corte da nossa terra, em seus dias de solenidade máxima? Bem no momento em que cada ministro quer ser, no mínimo, um Cícero, e outros são capazes de escrever mais de 1000 páginas para dizer se um cidadão é culpado ou inocente?” (linhas 25 a 28), é correto afirmar que, de acordo com o texto, o julgamento dos envolvidos no escândalo do mensalão foi um evento
Zé Linguiça
Pode até não ser uma verdade comprovada pela história, mas ninguém discute que se trata de uma
belíssima ideia. Na Roma antiga, quando um grande general voltava de uma campanha vitoriosa no
estrangeiro, fazia-se uma fabulosa procissão triunfal pelas ruas da cidade, o “triunfo”, para exibir diante do
mundo a glória do comandante vencedor, e homenagear a grandeza que ele trazia à pátria. Era a honra
máxima que um cidadão romano podia obter, e dava um trabalho danado chegar lá. Ele tinha de ter matado em
combate pelo menos 5000 soldados inimigos. Tinha de mostrar, presos, os chefes derrotados. Tinha de ter
enfrentado um exército pelo menos equivalente ao seu. Tinha, sobretudo, de trazer sua tropa de volta para
casa. O problema, nisso tudo, é que os romanos da Antiguidade eram gente que tinha em altíssima conta a
modéstia pessoal – e, em consequência, fechava a cara para qualquer demonstração de soberba. O que fazer,
então, na hora em que o general vitorioso desfilava perante a multidão como se fosse um rei? É aí que aparece
a ideia mencionada acima. Logo atrás do “triunfador”, no mesmo carro puxado por quatro cavalos que ele
conduzia, ficava um escravo que, de tanto em tanto tempo, lhe dizia baixinho ao ouvido: “Memento mori”. Ou:
“Lembre-se de que você vai morrer um dia”. Nada melhor, provavelmente, para baixar o facho de qualquer alta
autoridade que começa a se achar.
Esse procedimento poderia ser o tipo da coisa útil no governo brasileiro de hoje. Seria uma beleza, por
exemplo, se o chanceler Antonio Patriota, ao desfilar pelo planeta com a sua bela pasta de couro, distribuindo
em nome da presidente Dilma Rousseff as advertências do Brasil para os grandes, médios e pequenos deste
mundo, tivesse algum recurso parecido – naturalmente, com as adaptações necessárias às nossas realidades
atuais. Um oficial de chancelaria, digamos, andaria sempre atrás dele; só que, em vez do severo aviso romano,
ficaria repetindo ao seu ouvido: “Lembre-se do Zé Linguiça”. Deveria ser o suficiente para o dr. Patriota cair
bem depressa na real. Ele se lembraria imediatamente de que vem do país do Zé Linguiça – e ninguém, nem a
presidente Dilma, consegue transformar em potência mundial um país que chega a ter no centro do maior
espetáculo jurídico da sua história, mesmo por um momento fugaz, um cidadão chamado Zé Linguiça. Quem
acompanha o julgamento do mensalão pode estar lembrado desse Zé Linguiça – o elo perdido entre um dos
réus e a mala preta do professor Delúbio Soares, o tesoureiro do PT. Mas falar dele justo nesta hora, na
suprema corte da nossa terra, em seus dias de solenidade máxima? Bem no momento em que cada ministro
quer ser, no mínimo, um Cícero, e outros são capazes de escrever mais de 1000 páginas para dizer se um
cidadão é culpado ou inocente? Pois é – aí vem o Zé Linguiça, e com um personagem desses não há pose que
resista. Some, na hora, o Brasil Grande. Aparece o Brasil de verdade.
Falou-se do ministro Patriota, mas o aviso ao pé do ouvido vale para qualquer grão-duque do poder
público brasileiro, e para a própria presidente da República, quando começam a imaginar que são o rei Luís XV
de França. Quanto à mensagem dos lembretes, então, há uma infinidade de coisas a dizer além do Zé
Linguiça. A voz poderia lhes recordar, por exemplo: “Todo ano há 50000 homicídios no Brasil”. Em três anos,
com 150000 cadáveres, é o equivalente a uma bomba de Hiroshima. Ou: “O ensino médio brasileiro, pelos
dados oficiais de 2011, tem nota 3,7, numa escala que vai de 0 a 10”. Seria possível lembrar que as dez
entradas de São Paulo, a cidade mais rica e possante do Brasil, formam uma das mais pavorosas sucessões
de favelas de todo o mundo; nosso desenvolvimento, em qualquer lugar do país, tem o dom de atrair miséria.
Também seria útil que nossas autoridades, em seus acessos de grandeza, lembrassem que a população
brasileira está proibida de frequentar áreas inteiras das grandes cidades, tomadas por bandidos, vadios e
predadores diversos, como se vivesse sob o toque de recolher imposto por um exército de ocupação. Como
essa gente que está no governo pode dormir em paz num país assim?
Esse pesadelo não foi criado pelo governo da presidente Dilma, nem será resolvido por ela. Mas então,
como o rei da Espanha recomendou tempos atrás ao coronel Hugo Chávez, por que não se calam? Por que se
metem na vida do Paraguai ou dão palpites na economia da Europa? Por uma questão de decência comum, e
em nome do senso de ridículo, todos deveriam fazer, já, um voto de silêncio.
Revista Veja, 29 de agosto de 2012.
Na abordagem do tema de que trata o texto, o autor recorre à exemplificação como estratégia argumentativa em
Zé Linguiça
Pode até não ser uma verdade comprovada pela história, mas ninguém discute que se trata de uma
belíssima ideia. Na Roma antiga, quando um grande general voltava de uma campanha vitoriosa no
estrangeiro, fazia-se uma fabulosa procissão triunfal pelas ruas da cidade, o “triunfo”, para exibir diante do
mundo a glória do comandante vencedor, e homenagear a grandeza que ele trazia à pátria. Era a honra
máxima que um cidadão romano podia obter, e dava um trabalho danado chegar lá. Ele tinha de ter matado em
combate pelo menos 5000 soldados inimigos. Tinha de mostrar, presos, os chefes derrotados. Tinha de ter
enfrentado um exército pelo menos equivalente ao seu. Tinha, sobretudo, de trazer sua tropa de volta para
casa. O problema, nisso tudo, é que os romanos da Antiguidade eram gente que tinha em altíssima conta a
modéstia pessoal – e, em consequência, fechava a cara para qualquer demonstração de soberba. O que fazer,
então, na hora em que o general vitorioso desfilava perante a multidão como se fosse um rei? É aí que aparece
a ideia mencionada acima. Logo atrás do “triunfador”, no mesmo carro puxado por quatro cavalos que ele
conduzia, ficava um escravo que, de tanto em tanto tempo, lhe dizia baixinho ao ouvido: “Memento mori”. Ou:
“Lembre-se de que você vai morrer um dia”. Nada melhor, provavelmente, para baixar o facho de qualquer alta
autoridade que começa a se achar.
Esse procedimento poderia ser o tipo da coisa útil no governo brasileiro de hoje. Seria uma beleza, por
exemplo, se o chanceler Antonio Patriota, ao desfilar pelo planeta com a sua bela pasta de couro, distribuindo
em nome da presidente Dilma Rousseff as advertências do Brasil para os grandes, médios e pequenos deste
mundo, tivesse algum recurso parecido – naturalmente, com as adaptações necessárias às nossas realidades
atuais. Um oficial de chancelaria, digamos, andaria sempre atrás dele; só que, em vez do severo aviso romano,
ficaria repetindo ao seu ouvido: “Lembre-se do Zé Linguiça”. Deveria ser o suficiente para o dr. Patriota cair
bem depressa na real. Ele se lembraria imediatamente de que vem do país do Zé Linguiça – e ninguém, nem a
presidente Dilma, consegue transformar em potência mundial um país que chega a ter no centro do maior
espetáculo jurídico da sua história, mesmo por um momento fugaz, um cidadão chamado Zé Linguiça. Quem
acompanha o julgamento do mensalão pode estar lembrado desse Zé Linguiça – o elo perdido entre um dos
réus e a mala preta do professor Delúbio Soares, o tesoureiro do PT. Mas falar dele justo nesta hora, na
suprema corte da nossa terra, em seus dias de solenidade máxima? Bem no momento em que cada ministro
quer ser, no mínimo, um Cícero, e outros são capazes de escrever mais de 1000 páginas para dizer se um
cidadão é culpado ou inocente? Pois é – aí vem o Zé Linguiça, e com um personagem desses não há pose que
resista. Some, na hora, o Brasil Grande. Aparece o Brasil de verdade.
Falou-se do ministro Patriota, mas o aviso ao pé do ouvido vale para qualquer grão-duque do poder
público brasileiro, e para a própria presidente da República, quando começam a imaginar que são o rei Luís XV
de França. Quanto à mensagem dos lembretes, então, há uma infinidade de coisas a dizer além do Zé
Linguiça. A voz poderia lhes recordar, por exemplo: “Todo ano há 50000 homicídios no Brasil”. Em três anos,
com 150000 cadáveres, é o equivalente a uma bomba de Hiroshima. Ou: “O ensino médio brasileiro, pelos
dados oficiais de 2011, tem nota 3,7, numa escala que vai de 0 a 10”. Seria possível lembrar que as dez
entradas de São Paulo, a cidade mais rica e possante do Brasil, formam uma das mais pavorosas sucessões
de favelas de todo o mundo; nosso desenvolvimento, em qualquer lugar do país, tem o dom de atrair miséria.
Também seria útil que nossas autoridades, em seus acessos de grandeza, lembrassem que a população
brasileira está proibida de frequentar áreas inteiras das grandes cidades, tomadas por bandidos, vadios e
predadores diversos, como se vivesse sob o toque de recolher imposto por um exército de ocupação. Como
essa gente que está no governo pode dormir em paz num país assim?
Esse pesadelo não foi criado pelo governo da presidente Dilma, nem será resolvido por ela. Mas então,
como o rei da Espanha recomendou tempos atrás ao coronel Hugo Chávez, por que não se calam? Por que se
metem na vida do Paraguai ou dão palpites na economia da Europa? Por uma questão de decência comum, e
em nome do senso de ridículo, todos deveriam fazer, já, um voto de silêncio.
Revista Veja, 29 de agosto de 2012.
O trecho que ilustra o tom irônico que se manifesta no texto é
A viagem do elefante, de José Saramago, narra a viagem, de Lisboa até Viena, de um elefante asiático (ao qual José Saramago chamou Salomão), presente de D. João III a seu primo Maximiliano II, arquiduque da Áustria. O tempo da narrativa é o século XVI e a obra enfatiza, entre outras coisas, contradições e fraquezas humanas encarnadas pelos personagens e criticadas pelo narrador.
“A rainha bisbilhava uma oração, principiara já outra, quando de repente se interrompeu e gritou, Temos o Salomão, Quê, perguntou o rei, perplexo, sem perceber a intempestiva invocação ao rei de judá, Sim, senhor, Salomão o elefante, E para que quero eu aqui o elefante, perguntou o rei já algo abespinhado, Para o presente, senhor, para o presente de casamento, respondeu a rainha, pondo-se de pé, eufórica, excitadíssima, Não é presente de casamento, Dá o mesmo. O rei acenou com a cabeça lentamente três vezes seguidas, fez uma pausa e acenou outras três vezes, ao fim das quais admitiu, Parece-me uma ideia interessante, É mais do que interessante, é uma ideia boa, é uma ideia excelente, retrucou a rainha com um gesto de impaciência, quase de insubordinação, que não foi capaz de reprimir, há mais de dois anos que esse animal veio da índia, e desde então não tem feito outra coisa que não seja comer e dormir a dorna da água sempre cheia, forragens aos montões, é como se estivéssemos a sustentar uma besta à argola, e sem esperança de pago [...], então que vá para viena”.
SARAMAGO, José. A viagem do elefante, São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 13.
Glossário
bisbilhava: murmurava
abespinhado: zangado, irritado, agastado
Dos fragmentos abaixo, extraídos da obra de José Saramago, apenas um expõe os sentimentos contraditórios da esposa de Dom João III, rei de Portugal e dos Algarves, dona Catarina D’Áustria, em relação ao “magnífico exemplar de elefante asiático” oferecido como presente de casamento ao arquiduque austríaco Maximiliano II.
O fragmento em que se expõe esses sentimentos da rainha é: