Leia os textos a seguir “Não ler pode ser fatal”, de Beth Brait, e Exitus Letalis, de Rubem Fonseca, para responder à questão.
Não ler pode ser fatal
A dificuldade de entendimento das bulas de remédio inspirou Rubem Fonseca escrever a crônica Exitus Letalis
Por Beth Brait
Quando nos colocamos diante de um poema, sabemos que ele tem o objetivo e a força de nos retirar do lugar-comum, dum estado exclusivo de comunicação, para nos fazer ver o mundo por um prisma especial. Lírico ou dramático, longo como as epopeias ou curto como os haikais, os poemas pressupõem um tipo de leitor disposto a enfrentar a linguagem para, de maneira intransitiva, transitiva direta ou indireta, conhecer, usufruir sensações, refletir sobre o cotidiano, sobre o cosmos, sobre a condição humana.
Todo texto traz implícito um que, mesmo coabitando um só indivíduo, responde ativa e diferentemente aos diversos tipos a que tem acesso. A pressuposição, portanto, é a de que um mesmo cidadão enfrente de maneira diversa um poema e uma bula de remédio. Da bula, ao contrário da literatura, o leitor espera explicações, informações acerca da composição, da posologia, das indicações e contraindicações do medicamento que deverá utilizar, organizadas num texto claro, objetivo, apropriado a quem, estando doente, deve receber instrução para uso do medicamento e nada mais. Mas sabemos que não é assim. A dificuldade da leitura levou a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) a criar resoluções e decretos para melhorar a acessibilidade desses textos, o que, até o momento, ainda não resultou na fórmula ideal. Tanto que inspirou a irônica e certeira crônica Exitus Letalis, incluída em O Romance Morreu, de Rubem Fonseca (Companhia das Letras, 2007).
Criador de Mandrake, detetive e protagonista de vários de seus textos, que juntamente com o delegado Raul e Wexler está de volta na série televisiva que leva o nome do detetive, Rubem Fonseca interessa-se pelas linguagens artísticas, que se entrecruzam em suas obras e pelas cotidianas, que caracterizam épocas, comunidades, camadas sociais. Em Exitus Letalis não é apenas a dificuldade de leitura que é ironicamente mostrada, mas especialmente a sofisticada elaboração textual, visando salvaguardar os interesses da indústria e não a clareza de informações ao leitor.
Fonte: REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA. São Paulo: Editora Segmento, Ano III, n. 28, p. 34, 2008.
Exitus Letalis
Rubem Fonseca
A bula, da mesma forma que a poesia, tem suas metáforas, os seus eufemismos, os seus mistérios, e as partes melhores são sempre as que vêm sob os títulos “precauções e/ou advertências” e “reações adversas”. Essa parte da bula é certamente produzida por uma equipe da qual fazem parte cientistas, gramáticos, advogados especialistas em ações indenizatórias, poetas, criptógrafos, advogados criminalistas, marqueteiros, financistas e planejadores gráficos. Você tem que alertar o usuário dos riscos que ele corre (e, não se iluda, todo remédio tem um potencial de risco), ainda que eufemicamente, pois se o doente sofrer uma reação grave ao ingerir o remédio, o laboratório, por intermédio dos seus advogados, se defenderá dizendo que o doente e o seu médico conheciam esses riscos, devidamente explicitados na bula.
Vejam essa maravilha de eufemismo, de figura de retórica usada para amenizar, maquiar ou camuflar expressões desagradáveis empregando outras mais amenas e incompreensíveis. Trecho da bula de determinado remédio: “Uma porção maior ou mesmo menor do que 10% de...” (não cito o nome do remédio, aconselhado pelo meu advogado) “pode evoluir para “exitus letalis” (o itálico é da bula).
Qual o poeta, mesmo entre os modernos, os herméticos ou os concretistas, capaz de eufemizar, camuflando de maneira tão rica, o risco de morte – “evoluir para exitus letalis”?
Fonte: REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA. São Paulo: Editora Segmento, Ano III, n. 28, p. 35, 2008.
Considerando o texto “Não ler pode ser fatal”, de Beth Brait, em relação ao texto “Exitus Letalis” de Rubem Fonseca, pode-se dizer que há a estratégia de textualização denominada:
Leia o texto “A síndrome do terceiro ano”, para responder à questão.
A síndrome do terceiro ano
Moacyr Scliar*
Tive um colega que ficava impressionado com o número de enfermidades que podem acometer o ser humano. Ele percorria o índice do Harrison, o manual de medicina interna, onde estavam listadas centenas de enfermidades, suspirava e sacudia a cabeça: é muita doença, dizia e acrescentava com atemorizada resignação:
– Uma delas vai acabar me pegando.
Não era o único a nutrir tais temores. Esse colega era um caso típico de uma curiosa situação psicológica, que conhecíamos como “a doença do terceiro ano”. Por que o terceiro ano? Porque era esse o ano que, depois de passar pelas cadeiras básicas, entrávamos no ciclo clínico. E entrar no ciclo clínico era um choque. No hospital em que tínhamos aulas, a Santa Casa de Porto Alegre, só víamos doentes graves, pela óbvia razão de que os serviços que ali funcionavam eram todos centros de excelência médica; ali chegavam pacientes de todo o Rio Grande do Sul e de outros Estados.
Enfermidades raras não faltavam, e só contribuíam para aumentar nossa apreensão e em alguns casos transformavam-se na hipocondria do estudante de medicina, ou doença do estudante de medicina, ou síndrome do estudante de medicina. Conhecida nos Estados Unidos como medical studentitis, esta é uma situação muito frequente. Numa pesquisa realizada com 215 estudantes de medicina do terceiro e quarto anos da Universidade de Maastricht (Holanda), verificou-se que 30% deles tinham sintomas relacionados com doenças que estavam estudando. Mais que isto, existe uma correlação entre a síndrome (ou doença) do estudante de medicina e a tendência para fantasias, avaliada por testes psicológicos. Ou seja: quanto mais fértil a imaginação, maior a chance de aparecer a síndrome.
O problema não se restringe aos alunos de medicina. Ocorre com estudantes de outras áreas de saúde, como psicologia. Detalhe curioso: atores contratados para desempenhar o papel de doentes no ensino de estudantes de medicina às vezes começam a apresentar sintomas de doenças.
Como era de esperar, a hipocondria do estudante de medicina melhora com o tempo. Uma pesquisa realizada na Universidade de Auckland, Nova Zelândia, mostrou que os estudantes de medicina mais jovens tinham mais nosofobia que seus colegas veteranos. Ou seja: lá pelas tantas o jovem cai na real. Doenças existem, e são tantas, que acabam até sobrecarregando a imaginação.
Falei num colega impressionado com doenças. Tive um outro colega que, este sim, era um hipocondríaco legítimo. Uma noite recebi um telefonema dele pedindo que fosse com urgência à sua casa: estava com um problema grave, urgente. Colega é colega, de modo que larguei o que estava fazendo e corri para o prédio em que morava. Já estava me esperando na porta do apartamento. Seu aspecto dava dó: pálido, olhos arregalados, segurava nas mãos trêmulas um livro: o Harrison, claro... Tão logo me viu e sem sequer me cumprimentar foi anunciando:
– Estou com lupus eritematoso sistêmico.
E começou a ler:
– Mal-estar geral, tenho; dores articulares, tenho; cansaço, tenho; falta de apetite, tenho; febre, tenho...
A lista de sinais e sintomas não era pequena, e ele tinha tudo. Eu o escutava, consternado e confuso. Meu colega estava falando de uma doença no mínimo preocupante, da qual (e não por coincidência) tínhamos visto um caso poucos dias antes. Mas, e justamente por causa disso, eu também tinha estudado aquele capítulo do Harrison. Com o que me ocorreu uma ideia que se revelou absolutamente salvadora:
– Mas o lupus – eu disse – é muito mais comum em mulheres, e pelo que me consta você não é mulher.
O efeito foi mágico. De imediato resolveu deixar o diagnóstico de lupus de lado; agora se contentava com uma simples gripe, que nem precisaria ser tão séria assim – nada que um analgésico não resolvesse. Ou seja: o raciocínio epidemiológico ali foi decisivo.
O meu colega nunca mais me falou sobre doenças. Estava livre da hipocondria? Acho que sim, mesmo porque estávamos terminando o terceiro ano. Aos poucos, mergulhávamos na realidade da doença, da verdadeira doença. Que a muitos de nós deixaria com saudades da hipocondria do terceiro ano.
*Scliar foi escritor, médico sanitarista, professor de Medicina e membro da Academia Brasileira de Letras com mais de 70 livros publicados.
http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=359 Acesso em: 15/04/2023
Tendo lido atentamente a crônica de Scliar, assinale a afirmativa CORRETA:
Leia o texto “A síndrome do terceiro ano”, para responder à questão.
A síndrome do terceiro ano
Moacyr Scliar*
Tive um colega que ficava impressionado com o número de enfermidades que podem acometer o ser humano. Ele percorria o índice do Harrison, o manual de medicina interna, onde estavam listadas centenas de enfermidades, suspirava e sacudia a cabeça: é muita doença, dizia e acrescentava com atemorizada resignação:
– Uma delas vai acabar me pegando.
Não era o único a nutrir tais temores. Esse colega era um caso típico de uma curiosa situação psicológica, que conhecíamos como “a doença do terceiro ano”. Por que o terceiro ano? Porque era esse o ano que, depois de passar pelas cadeiras básicas, entrávamos no ciclo clínico. E entrar no ciclo clínico era um choque. No hospital em que tínhamos aulas, a Santa Casa de Porto Alegre, só víamos doentes graves, pela óbvia razão de que os serviços que ali funcionavam eram todos centros de excelência médica; ali chegavam pacientes de todo o Rio Grande do Sul e de outros Estados.
Enfermidades raras não faltavam, e só contribuíam para aumentar nossa apreensão e em alguns casos transformavam-se na hipocondria do estudante de medicina, ou doença do estudante de medicina, ou síndrome do estudante de medicina. Conhecida nos Estados Unidos como medical studentitis, esta é uma situação muito frequente. Numa pesquisa realizada com 215 estudantes de medicina do terceiro e quarto anos da Universidade de Maastricht (Holanda), verificou-se que 30% deles tinham sintomas relacionados com doenças que estavam estudando. Mais que isto, existe uma correlação entre a síndrome (ou doença) do estudante de medicina e a tendência para fantasias, avaliada por testes psicológicos. Ou seja: quanto mais fértil a imaginação, maior a chance de aparecer a síndrome.
O problema não se restringe aos alunos de medicina. Ocorre com estudantes de outras áreas de saúde, como psicologia. Detalhe curioso: atores contratados para desempenhar o papel de doentes no ensino de estudantes de medicina às vezes começam a apresentar sintomas de doenças.
Como era de esperar, a hipocondria do estudante de medicina melhora com o tempo. Uma pesquisa realizada na Universidade de Auckland, Nova Zelândia, mostrou que os estudantes de medicina mais jovens tinham mais nosofobia que seus colegas veteranos. Ou seja: lá pelas tantas o jovem cai na real. Doenças existem, e são tantas, que acabam até sobrecarregando a imaginação.
Falei num colega impressionado com doenças. Tive um outro colega que, este sim, era um hipocondríaco legítimo. Uma noite recebi um telefonema dele pedindo que fosse com urgência à sua casa: estava com um problema grave, urgente. Colega é colega, de modo que larguei o que estava fazendo e corri para o prédio em que morava. Já estava me esperando na porta do apartamento. Seu aspecto dava dó: pálido, olhos arregalados, segurava nas mãos trêmulas um livro: o Harrison, claro... Tão logo me viu e sem sequer me cumprimentar foi anunciando:
– Estou com lupus eritematoso sistêmico.
E começou a ler:
– Mal-estar geral, tenho; dores articulares, tenho; cansaço, tenho; falta de apetite, tenho; febre, tenho...
A lista de sinais e sintomas não era pequena, e ele tinha tudo. Eu o escutava, consternado e confuso. Meu colega estava falando de uma doença no mínimo preocupante, da qual (e não por coincidência) tínhamos visto um caso poucos dias antes. Mas, e justamente por causa disso, eu também tinha estudado aquele capítulo do Harrison. Com o que me ocorreu uma ideia que se revelou absolutamente salvadora:
– Mas o lupus – eu disse – é muito mais comum em mulheres, e pelo que me consta você não é mulher.
O efeito foi mágico. De imediato resolveu deixar o diagnóstico de lupus de lado; agora se contentava com uma simples gripe, que nem precisaria ser tão séria assim – nada que um analgésico não resolvesse. Ou seja: o raciocínio epidemiológico ali foi decisivo.
O meu colega nunca mais me falou sobre doenças. Estava livre da hipocondria? Acho que sim, mesmo porque estávamos terminando o terceiro ano. Aos poucos, mergulhávamos na realidade da doença, da verdadeira doença. Que a muitos de nós deixaria com saudades da hipocondria do terceiro ano.
*Scliar foi escritor, médico sanitarista, professor de Medicina e membro da Academia Brasileira de Letras com mais de 70 livros publicados.
http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=359 Acesso em: 15/04/2023
O texto em análise apresenta diversas estratégias que concorrem para provocar e/ou fazer o leitor refletir sobre o tema abordado, EXCETO:
Leia o texto “A síndrome do terceiro ano”, para responder à questão.
A síndrome do terceiro ano
Moacyr Scliar*
Tive um colega que ficava impressionado com o número de enfermidades que podem acometer o ser humano. Ele percorria o índice do Harrison, o manual de medicina interna, onde estavam listadas centenas de enfermidades, suspirava e sacudia a cabeça: é muita doença, dizia e acrescentava com atemorizada resignação:
– Uma delas vai acabar me pegando.
Não era o único a nutrir tais temores. Esse colega era um caso típico de uma curiosa situação psicológica, que conhecíamos como “a doença do terceiro ano”. Por que o terceiro ano? Porque era esse o ano que, depois de passar pelas cadeiras básicas, entrávamos no ciclo clínico. E entrar no ciclo clínico era um choque. No hospital em que tínhamos aulas, a Santa Casa de Porto Alegre, só víamos doentes graves, pela óbvia razão de que os serviços que ali funcionavam eram todos centros de excelência médica; ali chegavam pacientes de todo o Rio Grande do Sul e de outros Estados.
Enfermidades raras não faltavam, e só contribuíam para aumentar nossa apreensão e em alguns casos transformavam-se na hipocondria do estudante de medicina, ou doença do estudante de medicina, ou síndrome do estudante de medicina. Conhecida nos Estados Unidos como medical studentitis, esta é uma situação muito frequente. Numa pesquisa realizada com 215 estudantes de medicina do terceiro e quarto anos da Universidade de Maastricht (Holanda), verificou-se que 30% deles tinham sintomas relacionados com doenças que estavam estudando. Mais que isto, existe uma correlação entre a síndrome (ou doença) do estudante de medicina e a tendência para fantasias, avaliada por testes psicológicos. Ou seja: quanto mais fértil a imaginação, maior a chance de aparecer a síndrome.
O problema não se restringe aos alunos de medicina. Ocorre com estudantes de outras áreas de saúde, como psicologia. Detalhe curioso: atores contratados para desempenhar o papel de doentes no ensino de estudantes de medicina às vezes começam a apresentar sintomas de doenças.
Como era de esperar, a hipocondria do estudante de medicina melhora com o tempo. Uma pesquisa realizada na Universidade de Auckland, Nova Zelândia, mostrou que os estudantes de medicina mais jovens tinham mais nosofobia que seus colegas veteranos. Ou seja: lá pelas tantas o jovem cai na real. Doenças existem, e são tantas, que acabam até sobrecarregando a imaginação.
Falei num colega impressionado com doenças. Tive um outro colega que, este sim, era um hipocondríaco legítimo. Uma noite recebi um telefonema dele pedindo que fosse com urgência à sua casa: estava com um problema grave, urgente. Colega é colega, de modo que larguei o que estava fazendo e corri para o prédio em que morava. Já estava me esperando na porta do apartamento. Seu aspecto dava dó: pálido, olhos arregalados, segurava nas mãos trêmulas um livro: o Harrison, claro... Tão logo me viu e sem sequer me cumprimentar foi anunciando:
– Estou com lupus eritematoso sistêmico.
E começou a ler:
– Mal-estar geral, tenho; dores articulares, tenho; cansaço, tenho; falta de apetite, tenho; febre, tenho...
A lista de sinais e sintomas não era pequena, e ele tinha tudo. Eu o escutava, consternado e confuso. Meu colega estava falando de uma doença no mínimo preocupante, da qual (e não por coincidência) tínhamos visto um caso poucos dias antes. Mas, e justamente por causa disso, eu também tinha estudado aquele capítulo do Harrison. Com o que me ocorreu uma ideia que se revelou absolutamente salvadora:
– Mas o lupus – eu disse – é muito mais comum em mulheres, e pelo que me consta você não é mulher.
O efeito foi mágico. De imediato resolveu deixar o diagnóstico de lupus de lado; agora se contentava com uma simples gripe, que nem precisaria ser tão séria assim – nada que um analgésico não resolvesse. Ou seja: o raciocínio epidemiológico ali foi decisivo.
O meu colega nunca mais me falou sobre doenças. Estava livre da hipocondria? Acho que sim, mesmo porque estávamos terminando o terceiro ano. Aos poucos, mergulhávamos na realidade da doença, da verdadeira doença. Que a muitos de nós deixaria com saudades da hipocondria do terceiro ano.
*Scliar foi escritor, médico sanitarista, professor de Medicina e membro da Academia Brasileira de Letras com mais de 70 livros publicados.
http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=359 Acesso em: 15/04/2023
Pode-se dizer que há um efeito explicativo SOMENTE no seguinte excerto:
Leia o texto “A síndrome do terceiro ano”, para responder à questão.
A síndrome do terceiro ano
Moacyr Scliar*
Tive um colega que ficava impressionado com o número de enfermidades que podem acometer o ser humano. Ele percorria o índice do Harrison, o manual de medicina interna, onde estavam listadas centenas de enfermidades, suspirava e sacudia a cabeça: é muita doença, dizia e acrescentava com atemorizada resignação:
– Uma delas vai acabar me pegando.
Não era o único a nutrir tais temores. Esse colega era um caso típico de uma curiosa situação psicológica, que conhecíamos como “a doença do terceiro ano”. Por que o terceiro ano? Porque era esse o ano que, depois de passar pelas cadeiras básicas, entrávamos no ciclo clínico. E entrar no ciclo clínico era um choque. No hospital em que tínhamos aulas, a Santa Casa de Porto Alegre, só víamos doentes graves, pela óbvia razão de que os serviços que ali funcionavam eram todos centros de excelência médica; ali chegavam pacientes de todo o Rio Grande do Sul e de outros Estados.
Enfermidades raras não faltavam, e só contribuíam para aumentar nossa apreensão e em alguns casos transformavam-se na hipocondria do estudante de medicina, ou doença do estudante de medicina, ou síndrome do estudante de medicina. Conhecida nos Estados Unidos como medical studentitis, esta é uma situação muito frequente. Numa pesquisa realizada com 215 estudantes de medicina do terceiro e quarto anos da Universidade de Maastricht (Holanda), verificou-se que 30% deles tinham sintomas relacionados com doenças que estavam estudando. Mais que isto, existe uma correlação entre a síndrome (ou doença) do estudante de medicina e a tendência para fantasias, avaliada por testes psicológicos. Ou seja: quanto mais fértil a imaginação, maior a chance de aparecer a síndrome.
O problema não se restringe aos alunos de medicina. Ocorre com estudantes de outras áreas de saúde, como psicologia. Detalhe curioso: atores contratados para desempenhar o papel de doentes no ensino de estudantes de medicina às vezes começam a apresentar sintomas de doenças.
Como era de esperar, a hipocondria do estudante de medicina melhora com o tempo. Uma pesquisa realizada na Universidade de Auckland, Nova Zelândia, mostrou que os estudantes de medicina mais jovens tinham mais nosofobia que seus colegas veteranos. Ou seja: lá pelas tantas o jovem cai na real. Doenças existem, e são tantas, que acabam até sobrecarregando a imaginação.
Falei num colega impressionado com doenças. Tive um outro colega que, este sim, era um hipocondríaco legítimo. Uma noite recebi um telefonema dele pedindo que fosse com urgência à sua casa: estava com um problema grave, urgente. Colega é colega, de modo que larguei o que estava fazendo e corri para o prédio em que morava. Já estava me esperando na porta do apartamento. Seu aspecto dava dó: pálido, olhos arregalados, segurava nas mãos trêmulas um livro: o Harrison, claro... Tão logo me viu e sem sequer me cumprimentar foi anunciando:
– Estou com lupus eritematoso sistêmico.
E começou a ler:
– Mal-estar geral, tenho; dores articulares, tenho; cansaço, tenho; falta de apetite, tenho; febre, tenho...
A lista de sinais e sintomas não era pequena, e ele tinha tudo. Eu o escutava, consternado e confuso. Meu colega estava falando de uma doença no mínimo preocupante, da qual (e não por coincidência) tínhamos visto um caso poucos dias antes. Mas, e justamente por causa disso, eu também tinha estudado aquele capítulo do Harrison. Com o que me ocorreu uma ideia que se revelou absolutamente salvadora:
– Mas o lupus – eu disse – é muito mais comum em mulheres, e pelo que me consta você não é mulher.
O efeito foi mágico. De imediato resolveu deixar o diagnóstico de lupus de lado; agora se contentava com uma simples gripe, que nem precisaria ser tão séria assim – nada que um analgésico não resolvesse. Ou seja: o raciocínio epidemiológico ali foi decisivo.
O meu colega nunca mais me falou sobre doenças. Estava livre da hipocondria? Acho que sim, mesmo porque estávamos terminando o terceiro ano. Aos poucos, mergulhávamos na realidade da doença, da verdadeira doença. Que a muitos de nós deixaria com saudades da hipocondria do terceiro ano.
*Scliar foi escritor, médico sanitarista, professor de Medicina e membro da Academia Brasileira de Letras com mais de 70 livros publicados.
http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=359 Acesso em: 15/04/2023
Atente para os excertos em que foram destacados alguns vocábulos e propostos sinônimos para eles:
I. “Eu o escutava, consternado e confuso.” → alentado.
II. “De imediato resolveu deixar o diagnóstico de lupus de lado; agora se contentava com uma simples gripe, que nem precisaria ser tão séria assim – nada que um analgésico não resolvesse.” → prognóstico.
III. “só víamos doentes graves, pela óbvia razão de que os serviços que ali funcionavam eram todos centros de excelência médica;” → proeminência.
IV. “Enfermidades raras não faltavam, e só contribuíam para aumentar nossa apreensão e em alguns casos transformavam-se na hipocondria do estudante de medicina, ou doença do estudante de medicina, ou síndrome do estudante de medicina. → aflição.
Estão CORRETOS apenas os sinônimos apresentados em:
Leia o texto “A síndrome do terceiro ano”, para responder à questão.
A síndrome do terceiro ano
Moacyr Scliar*
Tive um colega que ficava impressionado com o número de enfermidades que podem acometer o ser humano. Ele percorria o índice do Harrison, o manual de medicina interna, onde estavam listadas centenas de enfermidades, suspirava e sacudia a cabeça: é muita doença, dizia e acrescentava com atemorizada resignação:
– Uma delas vai acabar me pegando.
Não era o único a nutrir tais temores. Esse colega era um caso típico de uma curiosa situação psicológica, que conhecíamos como “a doença do terceiro ano”. Por que o terceiro ano? Porque era esse o ano que, depois de passar pelas cadeiras básicas, entrávamos no ciclo clínico. E entrar no ciclo clínico era um choque. No hospital em que tínhamos aulas, a Santa Casa de Porto Alegre, só víamos doentes graves, pela óbvia razão de que os serviços que ali funcionavam eram todos centros de excelência médica; ali chegavam pacientes de todo o Rio Grande do Sul e de outros Estados.
Enfermidades raras não faltavam, e só contribuíam para aumentar nossa apreensão e em alguns casos transformavam-se na hipocondria do estudante de medicina, ou doença do estudante de medicina, ou síndrome do estudante de medicina. Conhecida nos Estados Unidos como medical studentitis, esta é uma situação muito frequente. Numa pesquisa realizada com 215 estudantes de medicina do terceiro e quarto anos da Universidade de Maastricht (Holanda), verificou-se que 30% deles tinham sintomas relacionados com doenças que estavam estudando. Mais que isto, existe uma correlação entre a síndrome (ou doença) do estudante de medicina e a tendência para fantasias, avaliada por testes psicológicos. Ou seja: quanto mais fértil a imaginação, maior a chance de aparecer a síndrome.
O problema não se restringe aos alunos de medicina. Ocorre com estudantes de outras áreas de saúde, como psicologia. Detalhe curioso: atores contratados para desempenhar o papel de doentes no ensino de estudantes de medicina às vezes começam a apresentar sintomas de doenças.
Como era de esperar, a hipocondria do estudante de medicina melhora com o tempo. Uma pesquisa realizada na Universidade de Auckland, Nova Zelândia, mostrou que os estudantes de medicina mais jovens tinham mais nosofobia que seus colegas veteranos. Ou seja: lá pelas tantas o jovem cai na real. Doenças existem, e são tantas, que acabam até sobrecarregando a imaginação.
Falei num colega impressionado com doenças. Tive um outro colega que, este sim, era um hipocondríaco legítimo. Uma noite recebi um telefonema dele pedindo que fosse com urgência à sua casa: estava com um problema grave, urgente. Colega é colega, de modo que larguei o que estava fazendo e corri para o prédio em que morava. Já estava me esperando na porta do apartamento. Seu aspecto dava dó: pálido, olhos arregalados, segurava nas mãos trêmulas um livro: o Harrison, claro... Tão logo me viu e sem sequer me cumprimentar foi anunciando:
– Estou com lupus eritematoso sistêmico.
E começou a ler:
– Mal-estar geral, tenho; dores articulares, tenho; cansaço, tenho; falta de apetite, tenho; febre, tenho...
A lista de sinais e sintomas não era pequena, e ele tinha tudo. Eu o escutava, consternado e confuso. Meu colega estava falando de uma doença no mínimo preocupante, da qual (e não por coincidência) tínhamos visto um caso poucos dias antes. Mas, e justamente por causa disso, eu também tinha estudado aquele capítulo do Harrison. Com o que me ocorreu uma ideia que se revelou absolutamente salvadora:
– Mas o lupus – eu disse – é muito mais comum em mulheres, e pelo que me consta você não é mulher.
O efeito foi mágico. De imediato resolveu deixar o diagnóstico de lupus de lado; agora se contentava com uma simples gripe, que nem precisaria ser tão séria assim – nada que um analgésico não resolvesse. Ou seja: o raciocínio epidemiológico ali foi decisivo.
O meu colega nunca mais me falou sobre doenças. Estava livre da hipocondria? Acho que sim, mesmo porque estávamos terminando o terceiro ano. Aos poucos, mergulhávamos na realidade da doença, da verdadeira doença. Que a muitos de nós deixaria com saudades da hipocondria do terceiro ano.
*Scliar foi escritor, médico sanitarista, professor de Medicina e membro da Academia Brasileira de Letras com mais de 70 livros publicados.
http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=359 Acesso em: 15/04/2023
Em todas as frases abaixo o constituinte ‘que’ sublinhado refere-se a um nome, EXCETO em: