TEXTO
Entre tais e tão tristes casos da semana, como o terremoto da Venezuela, a queda do Banco Rural e a
morte do sineiro da Glória, o que mais me comoveu foi o do sineiro.
Conheci dois sineiros na minha infância, aliás três – o Sineiro de S. Paulo, drama que se representava no
Teatro S. Pedro, o sineiro da Notre Dame de Paris, aquele que fazia um só corpo, ele e o sino, e voavam
[5] juntos em plena Idade Média, e um terceiro, que não digo, por ser caso particular. E este, quando
tornei a vê-lo, era caduco. Ora, o da Glória parece ter lançado a barra adiante de todos.
Ouvi muita vez repicarem, ouvi dobrarem os sinos da Glória, mas estava longe absolutamente de
saber quem era o autor de ambas as falas. Um dia cheguei a crer que andasse nisso eletricidade. Esta
força misteriosa há de acabar por entrar na igreja e já entrou, creio eu, em forma de luz. O gás também
[10] já ali se estabeleceu. A igreja é que vai abrindo a porta às novidades, desde que a abriu à cantora
de sociedade ou de teatro, para dar aos solos a voz de soprano, quando nós a tínhamos trazida por
D. João VI, sem despir-lhe as calças. Conheci uma dessas vozes, pessoa velha, pálida e desbarbada;
cantando, parecia moça.
O sineiro da Glória é que não era moço. Era um escravo, doado em 1853 àquela igreja, com a condição
[15] de a servir dois anos. Os dois anos acabaram em 1855, e o escravo ficou livre, mas continuou o ofício.
Contem bem os anos, quarenta e cinco, quase meio século, durante os quais este homem governou
uma torre. A torre era dele, dali regia a paróquia e contemplava o mundo.
Em vão passavam as gerações, ele não passava. Chamava-se João. Noivos casavam, ele repicava às
bodas; crianças nasciam, ele repicava ao batizado; pais e mães morriam, ele dobrava aos funerais.
[20] Acompanhou a história da cidade. Veio a febre amarela, o cólera-mórbus, e João dobrando. Os partidos
subiam ou caíam, João dobrava ou repicava, sem saber deles. Um dia começou a guerra do Paraguai, e
durou cinco anos; João repicava e dobrava, dobrava e repicava pelos mortos e pelas vitórias. Quando
se decretou o ventre livre das escravas, João é que repicou. Quando se fez a abolição completa, quem
repicou foi João. Um dia proclamou-se a República, João repicou por ela, e repicaria pelo Império, se
[25] o Império tornasse.
Não lhe atribuas inconsistência de opiniões; era o ofício. João não sabia de mortos nem de vivos;
a sua obrigação de 1853 era servir à Glória, tocando os sinos, e tocar os sinos, para servir à Glória,
alegremente ou tristemente, conforme a ordem. Pode ser até que, na maioria dos casos, só viesse a
saber do acontecimento depois do dobre ou do repique.
[30] Pois foi esse homem que morreu esta semana, com oitenta anos de idade. O menos que lhe podiam
dar era um dobre de finados, mas deram-lhe mais; a Irmandade do Sacramento foi buscá-lo à casa
do vigário Molina para a igreja, rezou-se-lhe um responso e levaram-no para o cemitério, onde nunca
jamais tocará sino de nenhuma espécie; ao menos, que se ouça deste mundo.
Machado de Assis A semana, 04/11/1897.
Para fazer referência ao personagem central do texto, o autor recorre a diferentes palavras e expressões.
Uma palavra que cumpre essa finalidade está destacada em: