NO FRAGMENTO DE TEXTO A SEGUIR, PARTE INICIAL DE UM CONTO DA ESCRITORA CLARICE LISPECTOR, O NARRADOR OBSERVA UMA CRIANÇA.
TEXTO
MENINO A BICO DE PENA
Como conhecer jamais o menino? Para conhecê-lo tenho que esperar que ele se deteriore, e só então
ele estará ao meu alcance. Lá está ele, um ponto no infinito. Ninguém conhecerá o hoje dele. Nem ele
próprio. Quanto a mim, olho, e é inútil: não consigo entender coisa apenas atual, totalmente atual. O que
conheço dele é a sua situação: o menino é aquele em quem acabaram de nascer os primeiros dentes
[5] e é o mesmo que será médico ou carpinteiro. Enquanto isso – lá está ele sentado no chão, de um real
que tenho de chamar de vegetativo para poder entender. Trinta mil desses meninos sentados no chão,
teriam eles a chance de construir um mundo outro, um que levasse em conta a memória da atualidade
absoluta a que um dia já pertencemos? A união faria a força. Lá está ele sentado, iniciando tudo de novo
mas, para a própria proteção futura dele, sem nenhuma chance verdadeira de realmente iniciar.
[10] Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de
pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive. Um dia o
domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim fizemos conosco e com Deus. O
próprio menino ajudará sua domesticação: ele é esforçado e coopera. Coopera sem saber que essa
ajuda que lhe pedimos é para o seu autossacrifício. Ultimamente ele até tem treinado muito. E assim
[15] continuará progredindo até que, pouco a pouco – pela bondade necessária com que nos salvamos –, ele
passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à expressão, da existência à vida. (...)
Da cozinha a mãe se certifica: você está quietinho aí? Chamado ao trabalho, o menino ergue-se com
dificuldade. Cambaleia sobre as pernas, com a atenção inteira para dentro: todo o seu equilíbrio é interno.
Conseguido isso, agora a inteira atenção para fora: ele observa o que o ato de se erguer provocou.
[20] Pois levantar-se teve consequências e consequências: o chão move-se incerto, uma cadeira o supera, a
parede o delimita. E na parede tem o retrato de O menino. É difícil olhar para o retrato alto sem apoiar-se
num móvel, isso ele ainda não treinou. Mas eis que sua própria dificuldade lhe serve de apoio: o que o
mantém de pé é exatamente prender a atenção ao retrato alto, olhar para cima lhe serve de guindaste.
Mas ele comete um erro: pestaneja. Ter pestanejado desliga-o por uma fração de segundo do retrato
[25] que o sustentava. O equilíbrio se desfaz – num único gesto total, ele cai sentado. (...)
CLARICE LISPECTOR Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
O uso dos dois-pontos introduz uma reformulação do que foi expresso anteriormente em: