Texto
Achava-me empoleirado no balcão, abrindo caixas e pacotes, examinando as miudezas da
prateleira. Meu pai, de bom humor, apontava-me objetos singulares e explicava o préstimo deles.
Demorei a atenção nuns cadernos de capa enfeitada por três faixas verticais, borrões,
nódoas cobertas de riscos semelhantes aos dos jornais e dos livros. Tive a ideia infeliz de abrir um
[5] desses folhetos, percorri as páginas amarelas, de papel ordinário. Meu pai tentou avivar-me a
curiosidade valorizando com energia as linhas mal impressas, falhadas, antipáticas. Afirmou que
as pessoas familiarizadas com elas dispunham de armas terríveis. Isto me pareceu absurdo: os
traços insignificantes não tinham feição perigosa de armas. Ouvi os louvores, incrédulo.
Aí meu pai me perguntou se eu não desejava inteirar-me daquelas maravilhas, tornar-me um
[10] sujeito sabido como padre João Inácio e o advogado Bento Américo. Respondi que não. Padre
João Inácio me fazia medo, e o advogado Bento Américo, notável na opinião do júri, residia longe
da vila e não me interessava. Meu pai insistiu em considerar esses dois homens como padrões e
relacionou-os com as cartilhas da prateleira. Largou pela segunda vez a interrogação pérfida.
Não me sentia propenso a adivinhar os sinais pretos do papel amarelo?
[15] Foi assim que se exprimiu o Tentador, humanizado, naquela manhã funesta. A consulta me
surpreendeu. Em geral não indagavam se qualquer coisa era do meu agrado: havia obrigações,
e tinha de submeter-me. A liberdade que me ofereciam de repente, o direito de opinar, insinuou-
me vaga desconfiança. Que estaria para acontecer? Mas a pergunta risonha levou-me a adotar
procedimento oposto à minha tendência. Receei mostrar-me descortês e obtuso, recair na
[20] sujeição habitual. Deixei-me persuadir, sem nenhum entusiasmo, esperando que os garranchos
do papel me dessem as qualidades necessárias para livrar-me de pequenos deveres e castigos.
Decidi-me.
E a aprendizagem começou ali mesmo. Com a indicação de cinco letras já conhecidas de
nome (...).
[25] No dia seguinte surgiram outras, depois outras – e iniciou-se a escravidão imposta ardilosamente.
Condenaram-me à tarefa odiosa, e como não me era possível realizá-la convenientemente, as
horas se dobravam, todo o tempo se consumia nela. (...)
Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti,
ele teimou – e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me. Atirava
[30] rápido meia dúzia de letras, ia jogar solo. À tarde pegava um côvado, levava-me para a sala de
visitas – e a lição era tempestuosa. Se não visse o côvado, eu ainda poderia dizer qualquer coisa.
Vendo-o, calava-me. Um pedaço de madeira, negro, pesado, da largura de quatro dedos.
(...)
Enfim consegui familiarizar-me com as letras quase todas. Aí me exibiram outras vinte e cinco,
[35] diferentes das primeiras e com os mesmos nomes delas. Atordoamento, preguiça, desespero,
vontade de acabar-me. Veio terceiro alfabeto, veio quarto, e a confusão se estabeleceu,
um horror de quiproquós. Quatro sinais com uma só denominação. Se me habituassem às
maiúsculas, deixando as minúsculas para mais tarde, talvez não me embrutecesse. Jogaram-me
simultaneamente maldades grandes e pequenas, impressas e manuscritas. Um inferno. (...)
[40] Sozinho não me embaraçava, mas na presença de meu pai emudecia. Ele endureceu algumas
semanas, antes de concluir que não valia a pena tentar esclarecer-me. (...)
Afinal meu pai desesperou de instruir-me (...). Respirei, meti-me na soletração, guiado por
Mocinha. (...)
Graciliano Ramos Infância. 38ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2006.
Isto me pareceu absurdo: os traços insignificantes não tinham feição perigosa de armas. (l. 7-8)
A frase acima revela um momento de incompreensão entre o narrador e seu pai, motivado pela tensão entre os seguintes aspectos da linguagem: