Conto e Cura
A criança está doente. A mãe a leva para cama e se senta ao lado. E então começa a lhe contar histórias. Como se deve entender isso? Já se sabe como o relato que o paciente faz ao médico no início do tratamento pode se tornar o começo de um processo curativo. Daí vem a pergunta se a narração não formaria o clima propício e a condição mais favorável de muitas curas, e mesmo se não seriam todas as doenças curáveis se apenas se deixassem flutuar para bem longe – até a foz – na correnteza da narração. Se imaginamos que a dor é uma barragem que se opõe à corrente da narrativa, então vemos claramente que é rompida onde sua inclinação se torna acentuada o bastante para largar tudo o que encontra em seu caminho ao mar do ditoso esquecimento. É o carinho que delineia um leito para essa corrente.
BENJAMIN, W. Obras Escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1995. Fragmento adaptado.
Na frase “É o carinho que delineia um leito para essa corrente”, o sentido do trecho em destaque recupera a comparação da narrativa com
TEXTO PARA A QUESTÃO
O médico
… e, de repente, um canto de minha memória que o esquecimento escondera se iluminou, e eu o vi de novo, do jeito como o havia visto pela primeira vez: o quadro. Vejo-me, menino, na sala de espera do consultório médico. Estou doente. Meus olhos assustados passeiam pelos objetos à minha volta, até que o encontram. Pendia, solitário, na parede branca. Levanto-me e me aproximo, para ver melhor. Leio o nome da tela: O médico.
É a sala de uma casa. Cena familiar.
Tudo está mergulhado na sombra, exceto o lugar central, iluminado pela luz de um lampião. Mas a luz é inútil. O lugar mais iluminado é o mais obscuro: uma menina doente. A clareza dos detalhes só serve para indicar o lugar onde o mistério é mais profundo. Quando a luz se acende sobre o abismo, o abismo fica mais escuro. Seus olhos estão fechados, mergulhados em um esquecimento febril. Nada sabe do que acontece à sua volta. Por onde andará ela? Infinitamente longe, num lugar ignorado, onde gesto algum pode tocá-la. Seu braço pende, inerte, sobre o vazio.
O lampião ilumina a menina doente. Mas os olhos de quem examina a tela com atenção desconfiam e percebem a presença de uma outra luz. Do lampião a querosene sai uma outra luz que ilumina a menina. Mas a menina doente sai da luz que ilumina a cena inteira: luz triste, luz sombria, que inunda a sala com o seu mistério: a luz da morte. Também a morte tem a sua luz.
O artista escolheu de propósito. Se, em vez de uma menina, fosse um velho, a morte seria uma outra. A morte tem muitas faces. A morte dos velhos, por mais dolorosa que seja, é parte da ordem natural das coisas: depois do crepúsculo segue-se a noite. A morte dos velhos é triste mas não é trágica. É como o acorde final de uma sonata. O fim é o que deveria ser. Mas a morte de um filho é uma mutilação. [...]
Amei esse quadro a primeira vez que o vi, sem entender. Talvez ele seja a razão por que, quando jovem, por muitos anos, sonhei ser médico. Amei a beleza da imagem de um homem solitário, em luta contra a morte. Diante da morte todos somos solitários. Amamos o médico não pelo seu saber, não pelo seu poder, mas pela solidariedade humana que se revela na sua espera meditativa. E todos os seus fracassos (pois não estão, todos eles, condenados a perder a última batalha?) serão perdoados se, no nosso desamparo, percebermos que ele, silenciosamente, permanece e medita, junto conosco.
ALVES, R. O médico. Campinas, SP: Papirus, 2002. Fragmento adaptado.
No primeiro parágrafo, o emprego de verbos no presente para narrar fatos do passado é um recurso que
TEXTO PARA A QUESTÃO
O médico
… e, de repente, um canto de minha memória que o esquecimento escondera se iluminou, e eu o vi de novo, do jeito como o havia visto pela primeira vez: o quadro. Vejo-me, menino, na sala de espera do consultório médico. Estou doente. Meus olhos assustados passeiam pelos objetos à minha volta, até que o encontram. Pendia, solitário, na parede branca. Levanto-me e me aproximo, para ver melhor. Leio o nome da tela: O médico.
É a sala de uma casa. Cena familiar.
Tudo está mergulhado na sombra, exceto o lugar central, iluminado pela luz de um lampião. Mas a luz é inútil. O lugar mais iluminado é o mais obscuro: uma menina doente. A clareza dos detalhes só serve para indicar o lugar onde o mistério é mais profundo. Quando a luz se acende sobre o abismo, o abismo fica mais escuro. Seus olhos estão fechados, mergulhados em um esquecimento febril. Nada sabe do que acontece à sua volta. Por onde andará ela? Infinitamente longe, num lugar ignorado, onde gesto algum pode tocá-la. Seu braço pende, inerte, sobre o vazio.
O lampião ilumina a menina doente. Mas os olhos de quem examina a tela com atenção desconfiam e percebem a presença de uma outra luz. Do lampião a querosene sai uma outra luz que ilumina a menina. Mas a menina doente sai da luz que ilumina a cena inteira: luz triste, luz sombria, que inunda a sala com o seu mistério: a luz da morte. Também a morte tem a sua luz.
O artista escolheu de propósito. Se, em vez de uma menina, fosse um velho, a morte seria uma outra. A morte tem muitas faces. A morte dos velhos, por mais dolorosa que seja, é parte da ordem natural das coisas: depois do crepúsculo segue-se a noite. A morte dos velhos é triste mas não é trágica. É como o acorde final de uma sonata. O fim é o que deveria ser. Mas a morte de um filho é uma mutilação. [...]
Amei esse quadro a primeira vez que o vi, sem entender. Talvez ele seja a razão por que, quando jovem, por muitos anos, sonhei ser médico. Amei a beleza da imagem de um homem solitário, em luta contra a morte. Diante da morte todos somos solitários. Amamos o médico não pelo seu saber, não pelo seu poder, mas pela solidariedade humana que se revela na sua espera meditativa. E todos os seus fracassos (pois não estão, todos eles, condenados a perder a última batalha?) serão perdoados se, no nosso desamparo, percebermos que ele, silenciosamente, permanece e medita, junto conosco.
ALVES, R. O médico. Campinas, SP: Papirus, 2002. Fragmento adaptado.
Na leitura comparativa da crônica com a pintura, o efeito dramático do quadro decorre da
Mal fechei os olhos, o quarto foi invadido por um batalhão de enfermeiras e auxiliares perguntando-me se apresentava alguma alergia, queixa cardíaca, pulmonar, urinária ou digestiva. Enquanto respondia a uma delas, outra instalava o aparelho de pressão em meu braço, e uma terceira colocava o termômetro e enlaçava a pulseira de identidade. Um técnico do laboratório passou um garrote para colher sangue e ligar o frasco de soro: "Vou dar uma picadinha".
Foi o primeiro de uma série infindável de diminutivos que viriam a ser pronunciados. Achei graça porque me lembrei de meu sogro, engenheiro agrônomo que se orgulhava de ter passado a vida a abrir fazendas e a desbravar rincões longínquos. Quando esse homem à moda antiga saiu do centro cirúrgico depois de uma operação de catarata e lhe perguntei se havia sentido dor, respondeu: "Dor é o de menos; duro é ouvir 'Abre o olhinho', 'Fecha o olhinho', e ser obrigado a ficar quieto".
Deitado de camisola e pulseirinha, sem forças para agir por conta própria, cercado de gente que diz: "Vamos tomar um remedinho"; "Abre a boquinha"; "Levanta a perninha"... há maturidade que resista?
VARELLA, D. O médico doente. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Adaptado.
O texto relaciona o emprego do diminutivo à
TEXTO PARA A QUESTÃO
O homem que petrificava cadáveres e outros cientistas que hoje estariam presos
França, verão de 1885. Jean-Baptiste Vincent Laborde espera ansioso na entrada do cemitério. A lei determina que, antes de um cadáver ser doado para a ciência, deve-se encenar um enterro cristão. Para Laborde, é fundamental ganhar tempo. Ele criou um laboratório portátil montado numa carroça, que conta com uma maca, lanternas e material cirúrgico. No país que viu nascer a guilhotina, esse médico tenta demonstrar que os executados continuam conscientes após a decapitação. Quando chegam os restos do condenado à morte, cedido pelas autoridades, Laborde segura sua cabeça, perfura o crânio e aplica correntes elétricas no cérebro. A cara começa a se mexer e, por fim, abre um olho.
Várias décadas mais tarde, Gabriel Beaurieux, outro médico francês, presencia uma execução na guilhotina. Segundos depois, o doutor levanta a cabeça do cesto e grita o nome do condenado. Os olhos se abrem e voltam a se fechar. O médico chama pela segunda vez. E de novo o morto abre os olhos
Laborde e Beaurieux explicaram seus experimentos em publicações da época, mas nunca conseguiram provar sua hipótese. A guilhotina deixou de ser usada em 1977. A história desses médicos é contada agora em O cientista louco: uma história da pesquisa no limite, que será lançado em 30 de janeiro. Trata-se de um compêndio de pesquisadores reais que, movidos por uma forte convicção e pela ânsia de conhecimento, enfrentaram o pensamento dominante da época e inclusive realizaram testes que hoje poderiam levá-los à prisão.
DOMINGUEZ, N. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/.html. Acesso em: 05 mar. 2019.
O texto foi produzido com o intuito de
TEXTO PARA A QUESTÃO
O homem que petrificava cadáveres e outros cientistas que hoje estariam presos
França, verão de 1885. Jean-Baptiste Vincent Laborde espera ansioso na entrada do cemitério. A lei determina que, antes de um cadáver ser doado para a ciência, deve-se encenar um enterro cristão. Para Laborde, é fundamental ganhar tempo. Ele criou um laboratório portátil montado numa carroça, que conta com uma maca, lanternas e material cirúrgico. No país que viu nascer a guilhotina, esse médico tenta demonstrar que os executados continuam conscientes após a decapitação. Quando chegam os restos do condenado à morte, cedido pelas autoridades, Laborde segura sua cabeça, perfura o crânio e aplica correntes elétricas no cérebro. A cara começa a se mexer e, por fim, abre um olho.
Várias décadas mais tarde, Gabriel Beaurieux, outro médico francês, presencia uma execução na guilhotina. Segundos depois, o doutor levanta a cabeça do cesto e grita o nome do condenado. Os olhos se abrem e voltam a se fechar. O médico chama pela segunda vez. E de novo o morto abre os olhos
Laborde e Beaurieux explicaram seus experimentos em publicações da época, mas nunca conseguiram provar sua hipótese. A guilhotina deixou de ser usada em 1977. A história desses médicos é contada agora em O cientista louco: uma história da pesquisa no limite, que será lançado em 30 de janeiro. Trata-se de um compêndio de pesquisadores reais que, movidos por uma forte convicção e pela ânsia de conhecimento, enfrentaram o pensamento dominante da época e inclusive realizaram testes que hoje poderiam levá-los à prisão.
DOMINGUEZ, N. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/.html. Acesso em: 05 mar. 2019.
Nos parágrafos iniciais, o tempo e o modo verbal predominantes constituem estratégias que contribuem para