A ideia de transformar O alienista de Machado de Assis numa sátira à ditadura de 1964 estava no ar. Havia um paralelo óbvio entre o terror espalhado por Simão Bacamarte – o cientista maluco e sinistro que infelicitava a pacata Itaguahy – e o regime antipopular dos militares, com seus ministros da Fazenda que metiam medo e disciplinavam o país para o capital. Nelson Pereira dos Santos percebeu as possibilidades artísticas da comparação, da qual tirou um filme agoniado e interessante, o Azyllo muito louco. Em espírito parecido, houve tentativas também de adaptação para o teatro, entre as quais a minha. O que todos procurávamos era o respaldo de um clássico nacional acima de qualquer suspeita, além de remoto no tempo, que deixasse desarmada a censura e possibilitasse a crítica ao Estado policial.
O paralelo funcionava como uma via de duas mãos e tinha efeitos retroativos. Não era só o velho Machado que emprestava personagens e situações para falar da repressão em nosso presente. O caminho inverso também valia, sugerindo uma leitura menos convencional do mestre e, por meio dele, do passado brasileiro. O festival de desfaçatez armado por nossas elites logo em seguida ao golpe, com sua salada de modernização, truculência e provincianismo, ensinava a reconhecer aspectos até então recalcados da ironia machadiana. Esta aparecia a uma luz nova, muito mais ferina e política, de incrível atualidade. Noutras palavras, as revelações sociais trazidas pelo golpe de 64 desempoeiravam o maior de nossos clássicos.
(“A lata de lixo da história”, Revista Piauí, agosto de 2014.)
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