Texto I
A transformação da favela em problema
Data do início do século não apenas a descoberta da favela,
mas também a sua transformação em problema. Aos escritos dos
jornalistas junta-se a voz de médicos e engenheiros preocupados
com o futuro da cidade e de sua população. A questão da
[5] habitação popular torna-se central na discussão sobre o futuro da
capital da República, sustentada fortemente por um discurso
médico-higienista endossado também pelos engenheiros.
No ano de 1905, em meio à Reforma Pereira Passos, o
ministro da Justiça e Negócios Interiores, dr. J.J. Seabra, criou
[10] uma comissão para dar parecer sobre o problema das
habitações populares, escolhendo para tratar do seu aspecto
“technico-sanitário” o engenheiro civil Everardo Backheuser, que
já havia desempenhado as funções de engenheiro municipal.
São, sobretudo, as habitações coletivas que chamam a
[15] atenção de Backheuser, conhecedor que era da legislação e da
experiência internacional em matéria de habitação. Preocupado
com a insalubridade, as epidemias e o contágio, ele examina
detalhadamente cortiços, casas de cômodos, avenidas,
estalagens, albergues e hospedarias, atentando para as
[20] diferentes legislações que regulavam a construção e o uso
desses vários tipos de moradia no Brasil.
Mesmo ocupando ainda um lugar menor na paisagem da
cidade, a favela não escapa ao olho clínico do engenheiro /
observador, merecendo uma menção específica em seu
[25] relatório pioneiro, publicado em 1906 pela Imprensa Nacional.
A referência é o morro da Favella, que se destaca pela
“originalidade e pelo inesperado”.
Nesse documento inédito, fala-se em primeiro lugar do
aspecto físico do aglomerado e dos seus casebres e se
[30] denunciam as precaríssimas condições de habitabilidade.
O documento assim se refere à população atraída pelo morro:
“Para alli vão os mais pobres, os mais necessitados, aqueles que,
pagando duramente alguns palmos de terreno, adquirem o direito
de escavar as encostas do morro e fincar com quatro moirões os
[35] quatro pilares do seu palacete. Os casebres espalham-se por todo
o morro; mais unidos na base, espaçam-se em se subindo pela rua
(!) da Igreja ou pela rua (!) do Mirante, euphemismos pelos quaes
se dão a conhecer uns caminhos estreitos e sinuosos que dão
difícil accesso à chapada do morro.[...] Alli não moram apenas os
[40] desordeiros e os facinoras como a legenda espalhou; alli moram
também operários laboriosos que a falta ou a carestia dos comodos
atira para esses logares altos, onde se gosa de uma barateza
relativa e de uma suave viração que sopra continuamente,
dulcificando a rudeza da habitação.”
[45] A “problematizacão” da favela, ocorrida quando o processo
de favelização ainda não se havia generalizado no Rio de
Janeiro, contou com o forte respaldo do saber médico, em um
prolongamento do diagnóstico feito ao cortiço e à pobreza,
apoiando-se igualmente na engenharia reformista, da qual
[50] Everardo Backheuser se fizera um bom representante. Foi
certamente partilhando desses princípios que a medicina e a
engenharia problematizaram a favela. Tão logo se passou da
Favella às favelas, foi feito o diagnóstico. Os médicos higienistas,
com seus estudos sobre os agentes causadores das epidemias,
[55] em suas suposições sobre a contaminação do meio urbano
pelos miasmas, viam a cidade do Rio de Janeiro como um
“corpo urbano” que apresentava deficiências e necessitava de
certas intervenções. Seguiu-se, naturalmente, a leitura da favela
como doença, moléstia contagiosa, uma patologia social que
[60] precisava ser combatida. As habitações — células do corpo
urbano — deveriam ser saudáveis, sujeitando-se rigorosamente
às regras da higiene, recebendo o ar e a luz indispensáveis à sua
salubridade, do mesmo modo que as células do corpo humano
tiram oxigênio pelo contato dos vasos do sistema arterial.
(CAMPOS, Andrelino. Do Quilombo à Favela - A Produção do “Espaço Criminalizado” no Rio de Janeiro. Fragmento adaptado)
Assinale a alternativa que melhor classifica o texto I quanto à tipologia predominante na sua composição.