Leia o texto a seguir, para responder à questão.
A posse das coisas
Danuza Leão
[1] Há muitos anos, vendi o apartamento onde morava para um americano, e como ele não tinha conta
em banco, pediu para pagar em dinheiro; dinheiro vivo. Eu até gostei. No fundo, no fundo, muito melhor
dinheiro do que cheque.
Depois que se deposita ainda são 48 horas para compensar, sabe-se lá se nesse tempo o comprador
[5] não morre e a mulher, com quem ele tem conta conjunta, vai lá e leva tudo. Em dinheiro é melhor.
Marcamos numa sala do meu banco, chegou o advogado, o homem do cartório, todos nos sentamos
em volta de uma mesa — eu sorrindo, porque estava vendendo, ele sorrindo, porque estava comprando—, e
começou a leitura da escritura. Não prestei muita atenção; já que estava vendendo, a única coisa que me
interessava era receber o dinheiro e depositar.
[10] Aí, chegou a hora do pagamento: o comprador abriu uma maleta tipo James Bond, botou os maços
de dinheiro em cima da mesa e esperou que eu conferisse. Até tentei, mas como não estava (nem estou)
acostumada a contar dinheiro, a coisa ficou lenta. Aí, a gerente do banco perguntou se eu não gostaria que
um funcionário, com mais prática, fizesse isso por mim; eu, aliviada, disse que sim.
Por alguma razão — talvez pelo respeito que o dinheiro impõe — fez-se silêncio. Todos olhávamos
[15] para as mãos da pessoa que contava e para as notas, como se estivéssemos hipnotizados. E foi aí que viajei
em meus pensamentos.
No quinto pacotinho, pensei que com eles podia comprar um carro. Mas aí vieram os outros, e me
perdi. Me perdi e só via montes de folhas de papel pintado, cortados do mesmo tamanho; muito bonitinhos
até, mas apenas um monte de papel. Perdi a noção de que aquilo era dinheiro e comecei a pensar. Então
[20] estava trocando meu apartamento com vista para o mar, onde fui tão feliz, por aqueles montinhos de papel?
E o tempo que levei escolhendo a cor das paredes, os sonhos que sonhei, os momentos de amizade, amor,
felicidade, tristeza, desespero, ódio, esperança, tudo isso acabou, trocado por papel colorido? E o que era o
dinheiro, afinal, essa invenção diabólica, razão de brigas, deslealdades, traições, guerras, mortes?
O rapaz não acabava de contar, o silêncio continuava, e eu pensando. De tantas coisas tinha ouvido
[25] falar: de pessoas que abriram mão de suas convicções, trocaram de amigos, de marido ou de mulher, tudo
por dinheiro, dos políticos que mudam de partido, que traem, que se vendem, que fazem qualquer coisa
— qualquer coisa mesmo — para serem eleitos e viverem em Brasília.
A contagem do dinheiro estava quase acabando, quando me lembrei de ter lido alguma coisa escrita
sobre o Brasil na época do Descobrimento; há quem diga que os índios eram inocentes e felizes porque não
[30] conheciam nem o dinheiro, nem o casamento, nem a propriedade, isto é: a posse das coisas ou das pessoas.
E eu acrescento: eles também não conheciam o poder.
O dinheiro acabou de ser contado, assinei a escritura, suspirei, esperei pelo recibo do depósito e saí.
Já era noite, os ônibus passavam lotados; dei graças a Deus por ter dinheiro para tomar um táxi e fui para
casa pensando que talvez fosse bem bom viver no meio do mato. Mas para isso seria preciso ter nascido há
[35] uns 500 anos.
Folha de São Paulo, 26-9-2010.
Quando a autora usa a informação entre parênteses no enunciado “Até tentei, mas como não estava (nem estou) acostumada a contar dinheiro...” (linhas 11-12), ela demonstra aos leitores