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A cegueira e o saber 6
Leio notícia de que foi inaugurado em Paris um restaurante onde as pessoas têm
a oportunidade de viver a experiência da vida de um cego, pois aí os clientes comem
no mais completo escuro. Chama-se, apropriadamente, Dans Le noir (“No escuro”).
Os garçons são cegos, e não apenas servem, mas atuam como guias levando os
fregueses até suas mesas. O restaurante está na moda. Situa-se ali perto do Beaubourg
e até o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin foi experimentar comer no escuro.
A coisa ocorre assim: “Antes de entrar na sala totalmente escura, os clientes
deixam em armários com cadeados, no bar do restaurante, relógios, isqueiros,
celulares e qualquer outro objeto que emita a mínima luz. Os pratos também são
escolhidos antes de entrar no recinto. Entre as opções, ‘ menu surpresa’, que só
será descoberto quando o garfo for levado à boca”. A experiência supera qualquer
instalação. As pessoas passam por três ambientes com cortinas nos quais a luz vai
rareando até a sala escura, onde há muito barulho, pois, para compensar a falta de
visão, as pessoas falam alto. A surpresa aumenta quando o cliente descobre que tem
outras pessoas à sua mesa.
Foi um ex-banqueiro e consultor de marketing social quem teve essa idéia.
E diz a matéria veiculada num site da BBC e mandada pela médica brasileira Mônica
Campos, residente nos Estados Unidos, que alguns clientes acham-se ridículos durante
a experiência, outros têm crise de choro e angústia, mas o fato é que o restaurante
está sempre lotado. As pessoas pagam para não ver.
É pitoresco, mas repito: as pessoas pagam para não ver, pagam para comerem
no escuro.
Não deixa de ser sintomático que se abra um restaurante onde os que veem
vão experimentar a cegueira, exatamente numa cultura de hipervisualização. Como
se estivéssemos fatigados de ver, agora queremos não-ver. Que seja por algumas
horas, não importa. É como se a poluição visual tivesse chegado a tal extremo, que
se sente a necessidade de recuperar outros sentidos, experimentando o “desver”
para, quem sabe, ver de novo.
Tomo esse restaurante como uma metáfora paradoxal de nossa época. A
modernidade que descobriu e aperfeiçoou a fotografia, e que, tendo conseguido
essa façanha, mobilizou-a criando o cinema e logo a seguir instalou a televisão
dentro de nossas casas para que víssemos o mundo e o universo 24 horas por dia;
a mesma modernidade que vem com essa enxurrada de letras e palavras em camisetas,
vitrines, anúncios luminosos, que nos manda imagens dos planetas mais distantes
e de detalhes das guerras e misérias mais horrendas; essa modernidade que é um
constante espetáculo de striptease, no qual o público e o privado, ou melhor, a sala de
visitas e a privada se acoplaram, essa modernidade, de tanto ver, já não vê. O mundo
é projetado como clipe de imagens esfaceladas acompanhadas por um ruído ou ritmo
qualquer. E, de repente, na “Cidade Luz ”, pagamos caro para comer no escuro.
SANTA’NNA, Affonso Romano de. A cegueira e o saber 6. IN_: A cegueira e o saber. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, p. 26-27. (Fragmento).
Segundo o texto, comer no escuro ou experimentar a cegueira é uma ação paradoxal, porque