Trabalho escravo contemporâneo: a barbárie institucionalizada
A escravidão no Brasil nunca desapareceu completamente como um fenômeno social, econômico e das relações sociais de trabalho. Na sua expressão contemporânea, sofisticou e aprimorou o sistema exploratório, bem como o processo de dominação psicológica do indivíduo ao ambiente de trabalho, fazendo homens, mulheres e crianças irem muito além do aprisionamento físico, requintando e redimensionando as sanções aplicadas, redefinindo o valor do trabalhador para o seu patrão. Dessa maneira, podemos qualificar o atual sistema de exploração escravista como mais degradante do que sua versão colonial e imperial. O trabalhador, hoje, é mais descartável, mais fácil de ser aliciado, deixou de ser uma mercadoria valorizada e difícil de se conseguir.
O escravo contemporâneo não é socialmente reconhecido, existe à margem da sociedade e das leis, e o combate à sua exploração, em grande medida, limita-se à atuação de alguns órgãos estatais e de organismos não governamentais e de defesa dos direitos humanos. Frequentemente, as pessoas submetidas a esse sistema de exploração desconhecem sua própria condição e acreditam que existe um contrato, ao menos moral, entre elas e o tomador do serviço, que as obriga a cumprir o seu trabalho até a quitação dos débitos involuntariamente contraídos. Essa é a mais nua e crua realidade da atual escravidão brasileira: ilegal, abscôndita, degradante, imoral e guiada sem freios para o lucro.
A relação que difere a condição de trabalho escravo hoje com as condições de trabalho escravo há dois séculos é fundamentalmente a condição de descartabilidade, o tipo da degradação e o tipo de necessidade econômica. A escravidão de hoje é uma forma extrema de exploração econômica, que se adaptou à globalização econômica e às novas formas de espoliação no mundo, podendo manifestar-se desde a escravidão por dívida até os mais atuais tipos de escravidão, como a originária da imigração, do tráfico de drogas e da exploração sexual. Mas há uma unidade em todas essas formas de escravidão contemporânea: a miséria e a necessidade de sobrevivência.
A realidade social brasileira e a permanência do trabalho escravo contemporâneo nos apontam que o homem pobre, sem acesso a políticas públicas fundamentais como educação e qualificação profissional, muitas vezes, por mais que trabalhe, pode ser rebaixado à condição de coisa ou de animal, segundo a vontade do seu "senhor".
Erradicar o trabalho escravo é muito mais complicado que simplesmente tirar os trabalhadores da escravidão e punir o infrator. É importante mudar o rumo do modelo de desenvolvimento econômico, que vem consumindo e transformando vidas humanas em meros acessórios produtivos de um padrão de exploração muito amplo, que envolve uma concepção de Estado totalmente pró-capital, voltada para a exploração dos recursos minerais, ambientais e sociais do país.
O trabalho escravo só chegará efetivamente a um fim quando houver de fato compromisso com os direitos humanos e com a construção de um país desenvolvido, não subordinado aos ditames externos; quando de fato houver plena disposição de estruturação de uma nação que tenha um alto nível de desenvolvimento econômico e social, que seja plenamente industrializada, com renda per capita alta, com alto índice de desenvolvimento humano (IDH), que aponte acesso à riqueza, à educação e à saúde, com esperança média de vida e bem-estar acessível a toda a população.
(Paulo Henrique Costa Mattos. Universidade e Sociedade, n. 62, junho de 2018, pp. 90-105 [versão reduzida e adaptada].)